Cem Anos de Solidão: a vida é um trem sem regresso

A memória é o grande tema da literatura. Não que venha a prevalecer, ao longo do tempo, mas porque significa a dignidade do homem em face do esquecimento, produto final do Universo. Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, sugere exatamente isso no capítulo final do seu principal romance. Há romances, aliás, que se lê uma vez e ficam razoavelmente compreendidos, caso do excelente O Amor nos Tempos do Cólera, do mesmo autor. Outros, mais complexos, existem para ser estudados. É o caso de O Som e a Fúria, de William Faulkner, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”. Livros tais exigem verdadeiras exegeses.

Custaria acreditar se Márquez, baseada no que ouviu dentro de casa quando menino, tivesse dito que seu clássico é apenas uma despretensiosa e divertida brincadeira, como as festanças intermináveis de um certo Aureliano Segundo. Como tal pode ser apreciado também, pois é um livro que diverte muito mais facilmente que aqueles outros dois, no sentido de comédia. Porque até no instante de maior desespero, o último Aureliano dá um grito revelador de certa têmpera humorística: “— Os amigos são uns filhos da puta!” Mas convém advertir que nessa mesma história enreda-se Melquíades e seus pergaminhos, um tratado medieval com “predições cifradas” em sânscrito.

Seria o caso de investigar o que há por trás desse esoterismo para iluminar as intenções mais profundas do texto. Teria sido Gabriel García Márquez um gnóstico tardio? Ou é apenas um farsante bem-sucedido, cujo encanto verbal não enganaria a mística Helena Blavatsky? Apesar de dificuldades intrínsecas como esta, “Cem Anos de Solidão” almeja o leitor comum — diferente nesse aspecto de “Grande Sertão” e mais ainda de “O Som e a Fúria” — porque, além da linguagem muito menos complexa, compõe-se de deliciosas histórias de fortíssimo apelo popular. Sem contar o fato de ser também um romance rural, vasado de magia.

Lendas, crendices, prodígios e fatos extraordinários são muito mais atraentes para o povo do que fatos sujeitos à verificação empírica. Ou que obras sérias demais, puramente filosóficas, como talvez A Náusea, de Jean Paul Sartre. Daí a sedução fácil que a religião exerce sobre a maioria das pessoas, propensas, como crianças, a borrar as fronteiras entre este mundo e outros mundos possíveis. O encanto da religião é mágico, apesar das dificuldades esotéricas de profetas como São João e Ezequiel. A personagem Fernanda del Carpio, em “Cem Anos de Solidão”, sabia disso: “— Se acreditaram nas Sagradas Escrituras, não vejo por que não vão acreditar em mim”. De fato. Afinal, o que pode ser mais espantoso do que as histórias bíblicas, creditadas por bilhões de seres humanos, em especial os mais simples? Desde a Reforma Protestante, um Deus todo poderoso falar com homens vulgares tem sido indiscutível lugar comum. Então porque deixariam de sê-lo, em escala, fenômenos muito menos inacreditáveis, como os absurdos de Macondo?

Criação de García Márquez, Macondo é um vilarejo minúsculo nos confins da Colômbia, amplamente conhecido em todo o mundo. Não há o que acrescentar sem fastio, a esse respeito. Mais interessante, talvez, é esclarecer o seu contexto.

Dois são os elementos históricos que aparecem na obra, fazendo ponte entre a realidade e a fantasia: a guerra entre liberais e conservadores (que o autor fixa em 20 anos) e, em seguida, a presença das tão mal faladas companhias bananeiras naquele micro-universo, onde estoura uma rebelião contra os exploradores do Norte. Morrem 3 mil operários, levados ao mar por um trem de 200 vagões — pelo menos fora da história oficial e dos expedientes judiciais, em que acreditavam os macondenses mais simples. Daí o último Aureliano falar em “fatos reais em que ninguém acreditava”, curiosa inversão que o mundo normalmente opera dos acontecimentos (e que temos visto com freqüência no Brasil atual). Porém, muito antes que a pacífica Macondo fosse atingida pela guerra civil e pela empresa ianque (que de fato proliferou na América Central no século 19), somos informados por José Arcadio Buendía que não havia ainda cemitério na aldeia. Interessante que as pessoas tampouco morriam na Sucupira de O Bem-Amado, novela de enorme sucesso da Rede Globo, que veio ao ar quatro anos depois. O Coronel Aureliano Buendía, nesse contexto, subleva os liberais de toda a nação contra a ordem conservadora, mas quando exerce o poder revela a índole autoritária de todos os caudilhos. É uma maldição latino-americana.

A história normalmente interage com os romances mais representativos de uma época. Poucos escritores são tão diretos em operar essa simbiose como Vargas Llosa e J.M. Coetzze, mas acontece com García Márquez como acontece nas obras de Ian McEwan, que se compraz em análises sócio-políticas de certas conjunturas envolvendo o Reino Unido. Ou questões reais que transcendem fronteiras, como o terrorismo, a inteligência artificial e o aquecimento global. Sendo de interesse secundária, porém, tal contextualização é importante como palco dos acontecimentos.

Gabriel García Márquez tem apreço por todos, conferindo o mesmo tratamento espraiado a inúmeros membros do assombroso clã dos páramos. Trata-se então de novela, como a de Cervantes? Tecnicamente, segundo Massaud Moisés, em “A Criação Literária”, romances entrelaçam histórias, ao passo que nas novelas elas se sucedem. O esquema, rigoroso na teoria, raramente o é na prática, dificultando a classificação — que mais importa aos críticos que aos escritores. Fato é que temos essa impressão geral de sucessão típica das novelas; cada personagem dessa história multitudinária compõe episódios fantásticos à parte, ao mesmo tempo em que a obra parece estruturar-se em inúmeros contos mágicos. Como partes inteiras da Bíblia, aliás. Assim, as fissuras de José Arcádio Buendía pelos processos alquímicos, Fernanda e sua estranha correspondência com os médicos invisíveis, a faina de um dos Aurelianos com seus peixinhos. Uma profusão em cima de outra de acontecimentos extraordinários, até os pormenores. Podemos citar, de memória, a tal peste de insônia, animais que reproduzem aos milhares (como em A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga, que escreveu seu romance um ano antes, em 1966), chuvas torrenciais que duram anos. Desta série, talvez o episódio mais impressionante seja o que narra a morte de Amaranta — fúnebre Penélope da região encantada do pantanal —, e o mais lírico o que se refere ao amor de Meme com Maurício Babilônia, colorido pela profusão de borboletas amarelas. É poesia.

García Márquez parece não ter limites para enredar a irrealidade, demonstrando uma caudalosa capacidade de fabulação, concentrada. Macondo, a cidadezinha dos Andes colombianos onde tudo aquilo acontece, é um mundo encantado. Como nas Mil e Uma Noites, há ali tapetes voadores mas também galeões enfeitados de orquídeas: um deles aparece cravado numa enseada, numa verdadeira visão de contos infantis. Ao mesmo tempo Macondo tangencia com o mundo real, sendo que em seu interior tudo é possível — inclusive os mortos permanecerem vivos. São tantas as aparições que mais parece um livro espírita. A impressão geral, neste rosário de funerais seguidos, em que novos protagonistas surgem capítulo após capítulo, é de que ninguém é mais importante que ninguém, em Macondo como na vida. Por mais importante que seja, cada um desaparece enquanto outras surgem para levar a história adiante, resistindo entre saudosas ruínas, invencíveis ervas daninhas e teias de aranha. Assim são os Buendía, neste “longo poema da fugacidade”:

“A história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo.”

A noção cíclica em que o romance se estrutura é evidente. Haverá de fato transcorrido cem anos? O tempo afinal existe, conforme sugerimos no começo deste ensaio? A crer na intuição de José Arcadio talvez não, para a sedução dos físicos teóricos:

“José Arcadio Buendía conversou com Prudêncio Aguilar até o amanhecer. Poucas horas depois, devastado pela vigília, entrou na oficina de Aureliano e perguntou: ‘Que dia é hoje?’ Aureliano respondeu que era terça-feira. ‘É o que eu pensava’, disse José Arcadio Buendía. ‘Mas de repente reparei que continua sendo segunda-feira, como ontem. Olha o céu, olha as paredes, olha as begônias. Hoje também é segunda-feira.’ Acostumado com as suas esquisitices, Aureliano não lhe deu importância. No dia seguinte, quarta-feira, José Arcadio Buendía voltou à oficina. ‘Isto é uma desgraça’, disse. Olha o ar, ouve o zumbido do sol, igualzinho a ontem e anteontem. Hoje também é segunda-feira.”

Por um momento o hermético José Arcádio tem a ilusão de viver num instante permanente. Ou talvez esteja enganado, porque “o eixo se desgasta”. Neste paradoxo verbal, seguimos todos adiante com ele, sem nos deslocar do momento: um presente eterno. “Cem Anos de Solidão” não requer explicações racionais nem afirmações categóricas: é uma máquina que funciona se deixarmos nos guiar pela imaginação, que cria incessantemente. Ou até onde a vida permitir. O capítulo final é um processo de dispersão, encerrado por um redemoinho que desintegra a casa do último sobrevivente, o décimo sétimo Aureliano, com ele fechado em seu quarto interpretando os arcanos de Melquíades, depois de ver o cadáver do filho recém-nascido ser devorado por um formigueiro.

Há quase todos impressiona a primeira frase de “Cem Anos de Solidão”, citada e recitada. Não é menos impressionante este final, previsto nos pergaminhos do sábio da Macedônia:

“E que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.”

A vida é um “trem sem regresso”, escreveu Gabriel García Márquez em alguma passagem de seu livro. O que assusta é saber que somos irremediavelmente membros dessa “estirpe condenada”, uma vez que também somos a “dispersa comunidade dos Macondos”, à espera do ciclone.