É preciso fazer um esforço danado para ser feliz

É preciso fazer um esforço danado para ser feliz

Eu não rezo. Já faz tempo que eu não rezo mais. Nunca fui muito convincente em rezar, nem quando era criança, obrigado pelos meus pais a fazer a catequese para garantir o direito de comer hóstia e me consagrar com uma vaga no céu. Na minha primeira confissão com o padre, cometi um desserviço à própria inocência, fiz um esforço maldito para me recordar de pecados convincentes, formidáveis, cabeludos, que já tivera cometido, coisas do tipo desobedecer a minha mãe, sentir raiva do meu pai, arreliar com os irmãos e comer o pedaço maior do frango. “Tão novo assim e já pecou tanto, meu filho?”, reclamou o homem balofo, com cheiro de mofo, que usava um vestido amarrado na cintura com uma corda-de-bacalhau, claramente irritado com a minha extensa ficha corrida. Nada que rezar 20 Ave-Maria e três Salve-Rainha não me salvasse do fogo do inferno, segundo a penitência que ele me aplicou. Eu não estava entendendo patavina daquilo. Não sabia nada sobre pecado, culpa, maldade. Só queria chutar bola, brincar com os outros meninos. Pelo menos, não tive o dissabor de me sentar no colo paroquial, numa época em que os padres pedófilos jogavam um verdadeiro bolão, encobertados pelo Vaticano.

A última vez que fiz uma prece foi durante uma partida de futebol de várzea. Entendam o meu carma: sou zagueiro reserva no time do Sucatão. Enfrentávamos uma duríssima partida de futebol contra uma equipe de craques do passado, um ajuntamento de homens carecas, barrigudos, artríticos, os chamados Defensores da Birita, da remota cidade de Jandaia do Meio. As pontes de safena nos corações dos adversários conduziram-nos a uma retumbante derrota: 5 x 0, fora o chocolate. Placar injusto, na minha opinião, para quem tinha viajado de Kombi por três horas e suportado o cheiro de sovaco dos companheiros ao rezar o Pai Nosso no automático, sem muito espírito de equipe, numa roda de oração organizada no meio do campo. “Que ninguém se machuque, Senhor. Que ninguém sofra um infarto, ó Pai. Que a bola não entre no nosso gol, Nossa Senhora Aparecida.” Ninguém se machucou. Ninguém morreu. Mas, a bola entrou um punhado de vezes. Fé. Acho que é isso o que me falta para evitar novas goleadas da vida. Depois da pelada teve churrasco, cerveja e resenha, que são as partes que realmente importam nos icônicos confrontos do futebol amador.

Tenho 54. É muita pretensão minha almejar os 100. Nem sei se quero isso. Envelhecer é uma porcaria, mas, não me importo de me tornar um idoso, desde que consiga enfiar comida na boca e urinar à moda antiga, ou seja, em pé, escorado com uma das mãos espalmada contra a parede de azulejos, balançando a pica para livrar a cueca das últimas e indesejáveis gotinhas de mijo. Considerando a própolis e as vitaminas para nascer cabelo, eu tomo umas seis pílulas por dia, acreditem, sem contar os aerossóis contra a asma. Nenhum problema urológico, posso lhes assegurar. Minha próstata vai bem e manda lembranças. Consigo a proeza, nem um pouco franciscana, de afogar formigas com o meu jato débil, à cerca de dois palmos cravados, um verdadeiro recorde de mijo-a-distância, em se tratando de um veterano, um herói sem modos que nunca serviu no Vietnã.

Tenho mania de fazer xixi no quintal de casa. Não sei como isso começou. Penso que foi por influência do meu falecido avô. Quase sempre, passava as férias na sua fazenda. Grudava no velho que nem carrapato. Fiz ele jurar que me deixaria o relógio de bolso, depois que morresse. O 38 com cabo de madrepérola, não. Não era o tipo de herança que se deixava para um neto. O ritual era o seguinte. Ajeitava o chapéu de feltro na cabeça branca. Escorava-se num tronco. Abria a braguilha. Drenava a bexiga. A poeira subia bonito. Parecia um cavalo cansado. Eu ria. Eu o amava.

O fato é que este hábito anda me trazendo alguns problemas com o vizinho do lado. O sujeito cismou de construir um sobrado enorme, cuja janela da suíte do casal propicia uma visão plena do meu pomar. Suponho que já tenha sido flagrado, algumas vezes, cometendo outro ato esdrúxulo: andar nu pela casa, como se fosse um interno no meu próprio hospício. Sou um animal desenxabido com sanhas de liberdade. Apesar das teorias naturistas, conta-se a boca miúda que o meu nome constará na pauta da próxima reunião de condomínio. Será que falam sério? Já vou avisando que não aceitarei reprimendas. Cheguei no pedaço primeiro. O jardim fui eu quem plantou, com a anuência dos passarinhos, que não se importam nem um pouquinho com a minha falta de decoro. Tenho, sim, o direito adquirido de fazer xixi na relva. É tradição familiar. Nada vai me deter. A não ser, os marimbondos e as abelhas que não param de sugar as florezinhas do jardim.