A lenda de Fausto: acusa-me que te acuso

A lenda de Fausto: acusa-me que te acuso

A figura de Fausto é baseada em Johann Georg Faust (1480-1540), supostamente um alquimista que viveu no sul da Alemanha à época do Renascimento. Sua história é folclórica e envolve um pacto com o demônio. Segundo se alega, Fausto queria mais energia para se dedicar à ciência e ao conhecimento.

Da lenda surgiram obras literárias. As mais famosas são o “Fausto”, de Goethe (1790), e o “Doutor Fausto”, de Thomas Mann (1947). O primeiro, uma peça trágica, que se baseia no personagem histórico; o segundo, um longo romance, que conta a vida de Adrian Leverkhun, um genial compositor alemão, que produzia “música dodecafônica” — para quem entende do assunto, a dodecafonia utiliza as 12 notas da escala cromática, e não apenas as sete da escala diatônica, o que torna mais complexa a composição e a audição musicais.

Pois bem. No clássico de Goethe, Fausto perde sua amada Margarida, mas, ao final, vai ao paraíso. No moderno de Mann, Adrian perde um pequeno amigo e, ao final, enlouquece, voltando aos cuidados de sua mãe até a morte.

O que percebemos — e que não escapou à argúcia de Otto Carpeaux — é que, enquanto Goethe absolve seu Fausto, Mann, 150 anos depois, condena o seu.

E aqui identifico o que o classicismo de Goethe e o modernismo de Mann têm a nos ensinar: no final do Século 18 o ser humano era muito mais complacente com seu semelhante do que nossos contemporâneos viventes dos Séculos 20 e 21.

Os gregos antigos sempre cultivaram hábitos de hospitalidade; nós, os modernos, somos desconfiados. Mais ainda nos dias atuais, o cheiro do outro exala cada vez mais pútrido em direção às nossas narinas.

A modernidade — e a pós-modernidade ainda mais — parece ter encampado de vez o jacobinismo e o macartismo, o que me permite transitar tranquilamente por todos os vieses políticos da insanidade. Enquanto eles, aqueles bárbaros vikings politeístas, conciliaram-se com Alfredo e seu catolicismo inglês, nós, os modernos, queimamos cruzes, chutamos santas e atacamos a fé alheia.

Oswald de Andrade lamentou que a chuva fez o português vestir o índio, ao invés de um dia de sol que tivesse feito o índio despir o português; mas nós, moderninhos, vaiamos Yoani Sánchez e Íngrid Betancourt, porque, malgrado suas agruras, elas representam narrativas que atrapalham nossos planos progressistas.

Enquanto a vetusta primeira emenda à Convenção de Filadélfia celebrava a liberdade de culto e de expressão, nós, do alto do nosso moralismo pós-moderno, queremos tutelar aquilo que os outros podem ou não acreditar — se querem comprar feijões mágicos, que comprem! — ou aquilo que apreciam ou não como arte — se querem ver peladões no museu, que vejam!

E aqui voltamos à música: há uma combinação de notas musicais conhecida como trítono — duas notas tocadas em conjunto e que são separadas por três tons inteiros — que causa uma tensão harmônica apelidada de ‘diabolus in musica’, porque, conta a lenda, a Igreja Católica, durante a Idade Média, teria proscrito a utilização da técnica, por evocar uma desarmonia que, se não combinava com a perfeição divina, só podia ser obra do coisa-ruim. Ouça solos de blues ou a música de abertura do primeiro álbum da banda Black Sabbath para compreender.

Sim, eu sei. É uma lenda. Folclores à parte, peço perdão por insistir tanto em expor o meu incômodo com os inquisidores pós-modernos, que proscrevem comportamentos, impõem dogmas e decidem o que você gosta não. Também faço a mea-culpa, pois não sou santo. Minha casa não é o Grande Hotel, tampouco durmo de portas e janelas abertas. Cada dia mais, no entanto, enterro meu Rousseau e venero meu Hobbes.