O coração não é o epicentro do amor

O coração não é o epicentro do amor

Não pares de escrever, Guilherme. Ao contrário do que se diz por aí, o coração não é o epicentro do amor. São os pensamentos. E nem todos eles, sãos, se bem me entendes. A mente humana opera, todo santo dia, a favor ou contra a integridade do planeta. Entende os meandros de um cético, um pobre ignorante, um ser tolo e pragmático que sou: Deus são as coisas todas do mundo, desde as ínfimas até as gigantescas; não aquele homem velho e indeciso que flutua sobre as nuvens, alheio à gravidade da miséria humana. A nossa verve poética é por demais selvagem, carece das piores palavras para se expressar, meu caro. Não te culpes pelo fato de ter perdido a mão para escrever amenidades. Sei muito bem o que é isso, já faz tempo. Na nossa idade, é mais do que hora de compreendermos esse fenômeno criativo, não como um distúrbio psíquico que mereça ser amortecido por um rol de medicamentos, mas, antes, pelo contrário, funciona — perfeitamente mal, eu diria — como uma válvula de escape que nos imunizará contra a loucura, levando-se em conta que, escapar da realidade é o tipo de crime que de fato não compensa. Não há como se esconder das mazelas humanas. Escrever é só mais uma forma de morrer por nada, Guilherme. Entretanto, há uma certa elegância nessa autoaniquilação. É como esculpir uma estátua a partir de uma pedra de mármore ou costurar as coronárias de um cardiopata, enquanto elas rebolam, despercebidas do risco substancial de morte, nas entranhas pujantes de um coração que só pensa em bombear, em bombear, em bombear sangue, mesmo que não haja sangue suficiente, mesmo que não haja motivo o bastante para se permanecer vivo. Não se treme com um bisturi na mão, dileto amigo. Não no peito de outra pessoa. Da mesma forma, não se deve vacilar com os dedos sobre um teclado de computador. Escreva-se e ponto. Suponho que soubeste do fatídico acontecimento com o Flávio. “Que ridículo matar-se a esta altura da vida”, ouvi o comentário da boca de um boçal, um tísico que me oferecia cigarros. Eu retruquei “Eu não fumo, eu não tusso, eu não julgo. Cada um sabe onde lhe aperta o calo. Cala-te, senhor. Cala-te, por favor…”. O que mata as pessoas são os venenos cotidianos que não aparecem em frascos rotulados com uma caveira. Morre-se também pela falta de uma boa causa, de metas. Mete no papel, se ainda usas o papel para escrever poemas, os teus objetivos para o futuro. Por mais que se queira, o final não está tão próximo quanto se imagina, amigo. Faz poucos dias, um asteroide passou raspando pela Terra, mas, ficou de dar meia-volta e retornar em alguns anos. Confiemos nos desígnios do cometa. Acompanho, sob homeopáticas doses de horror, o enredo diário, malévolo, protagonizado pela peste que assola a humanidade. Não concebo afogar-me no seco. Tu sabes: são os traumas de um asmático. Estou me cuidando à beça, me escondendo ao máximo. Lastimavelmente, há um mínimo de possibilidade de eu sair de casa para cometer vadiagens. Sim, ainda trabalho como médico de mulheres e vendedor de espetinhos. Ri o quanto quiseres, amigo. Eu já não ligo com os paradoxos esdrúxulos. Não te apoquentes comigo além do razoável. Não atuo nas linhas de frente contra a pandemia. Mesmo assim, se uma gata mia de forma mais estridente, sobre o teto de zinco quente, penso logo na famigerada virose. Já viste este velho filme com Paul Newman e Elizabeth Taylor? Liz Taylor era uma mulher estonteante. Preferes Scarlett Johansson? Não te culpo por isso. Escolhe, tu, as armas. Duelemos por ela, até que um de nós dois morra de tédio ou de desesperança. Os dias nunca estiveram para o riso, mesmo assim, rimos, desbragadamente, como loucos. Toma alguns bons conselhos gratuitos, meu amigo. Bebe pílulas. Pinta o bigode. Mas, não pares de escrever, Guilherme. A poesia viceja dentro de ti feito um micróbio. A história demanda registros para a posteridade. Nossa missão, enquanto seres melancólicos, desencantados com a vida, é continuar escrevendo, ainda que sejam amenidades. Em busca de finais felizes, toda poesia, ainda que feroz, será perdoada.

Em memória de Flávio Migliaccio.