O livro que salvou minha vida

O livro que salvou minha vida

Ao voltar os olhos ao passado, vejo que, apesar de ter nascido num ambiente ágrafo e de pais analfabetos, desde muito cedo algum texto escrito, ou salvou minha vida, ou me deu esperança e entusiasmo, permitindo-me vislumbrar algum caminho. Vislumbrar caminhos, não de encruzilhada, mas de escuridão, pela falta de opções. 

Ainda ali, pelos oito anos, morávamos numa choça de palha, próxima a um mato de árvores imensas, às cabeceiras de um riacho. A relação de meu pai como senhor da terra era de agregado. Tocava, por meação, um pequeno roçado que dava apenas para uma subsistência frugal, complementada pelas carnes de peixe e de caça, de frutas do mato e de mel de abelhas nativas.

Certo dia, um propagandista do Biotônico Fontoura perdeu-se nas trilhas do sertão e acabou batendo à nossa porta. Vi que meu pai iluminou-se com a presença da visita, pois isso por ali quase não havia. Meu pai e o homem falaram de caminhos e rotas, de balsa e de travessias e de outras coisas que meu vocabulário não alcançou. O homem disse que pegou o caminho errado, num entroncamento, e confundiu-se. Logo em seguida, conformou-se dizendo que Deus faz o caminho certo por trilhas erradas, porque viu que foi Deus que o encaminhou até ali. Segundo ele, a criança (que era eu) estava opilada e magricela, mas tinha o remédio do qual eu precisava. Foi até a montaria, trouxe um vidrinho já mexido e ofereceu-me uma dose para degustar, numa colherzinha ensebada. Fiz cara de que gostei e só não pedi mais porque minha mãe ensinava: se alguém quer dar, que dê, mas pedir não é coisa que se faça.

Quando fiz cara de gosto e boca boa, ele completou o argumento, dizendo que criança da minha idade, se não tiver um fortificante, vai crescer fracote, e os fracotes não terão vez no futuro. O futuro de minha vida estava sendo decidido ali naquela hora. Ele queria vender-nos alguns vidros de Biotônico. Meu pai argumentou que agradecia a oferta, mas que não tinha dinheiro. Ele propôs deixar o fortificante com meu pai e, na volta, mais ou menos um mês, receberia.

Meu pai esclareceu-lhe que não tinha nem ia ter dinheiro. Dinheiro ali não corria. O que havia era só escambo. Três dias de serviço por um kg de sal, dois dias por um litro de banha ou um dia por uma bola de sabão. Aqui é assim que a coisa funciona. Como o senhor não tem roça para eu trabalhar, não tenho como comprar o fortificante.

O homem achava que meu pai estava exagerando e argumentou ainda que o Biotônico abriria meu apetite e eu ia ficaria forte igual um touro. Meu pai deu uma resposta de espírito: — Senhor, apetite o menino tem. E tem até demais. O que lhe falta é comida.

Com essa resposta, o homem desacorçoou e, com o vidro na mão, encaminhou-se para a mula que continuava quietinha, só tremendo o couro de vez em quando para afugentar as mutucas.

Meu pai advertiu o propagandista que não adiantava seguir viagem naquela hora, porque a balsa do rio Claro só funcionava à tarde. ele hesitou. Um passo pra frente, um olhar pra trás. Foi convencido a ficar para o almoço.

Lá fora, pela porta do fundo, meu pai pegou um cacete, que mantinha de jeito, e atirou no pescoço de um frango que ciscava de bobeira nas imediações. O cão, treinado, foi lá e pegou-o ainda estrebuchando, e entregou nos pés de minha mãe. 

A conversa continuou. Falaram de coisas da juventude, das chuvas bravas daquele ano, do período bom de pesca e de algumas coisas da revolução de Cuba, que o homem disse ter ouvido pelo rádio. O assunto foi enfraquecendo, como se tivesse pouco fortificante, até que morreu. O homem ficou sem graça, ali, esperando, sem ter o que fazer, nem mesmo o que falar, enquanto minha mãe preparava o almoço com o penoso ao molho de açafrão selvagem. Ele se levantou, foi à mula, novamente, e voltou de lá com uma coisa na mão que depois eu soube que a era o Almanaque do Biotônico. O homem me chamou para sentar ao lado dele no banco de taquaras. Abriu a revista e começou ler umas historinhas de “Lobo Mau e os Três Porquinhos”, “Chapeuzinho Vermelho”, “João e o Pé de Feijão”, “Branca de Neve”, “Moura Torta” e umas charadinhas do tipo “o que é o que é”?

Não me lembrava de já ter visto um texto escrito. Fiquei maravilhado, ao ver aquelas formiguinhas mortas, enfileiradas nas folhas de papel, alguém passando as vistas sobre elas e retirando aquelas histórias que me deixavam quase sem fôlego. Como havia tempo, eu pedia o homem para ler de novo, duas, três vezes.

Quando almoçou, ele elogiou minha mãe pelo frango ao molho de açafrão, e meu pai, pela acolhida. E me elogiou também por ter gostado das histórias. Por isso, me dava um almanaque de presente.  E o homem se foi até sumir pelas trilhas encarquilhadas.

Minha mãe costurou um embornal de trapos e eu guardei o almanaque que, a cada dia, esfolava-se mais, de tanto eu ficar com ele na mão, passar os olhos nas carreiras de formigas e repetir as histórias identificavas pelas ilustrações.  Quando aparecia alguém ou eu ia à casa de algum vizinho, levava o almanaque e fazia a leitura de araque. Correu pela região que o Cipó (meu apelido na época) bastou tomar uma dose de Biotônico que aprendeu ler.

Tive sorte, porque ninguém me pediu para escrever ou ler alguma carta. Eu sabia que estava fingindo. Com o tempo, fui desenvolvendo uma vontade inquebrantável de ir pra escola, aprender ler de verdade e, um dia, escrever histórias parecidas com aquelas. Manifestei para meus pais esse desejo. Eles me tiraram de ideia. Filho de agregado não estudava. Não havia escolas num raio de sete léguas. Só os filhos dos fazendeiros estudavam. Em Bonfim, Rio de Janeiro ou Lisboa.  Mas o mundo foi girando e dando novas feições à realidade. Meu desejo foi tamanho que aos 11 anos, após vender minha parte da colheita de uma roça de feijão, que plantei, comprei meu primeiro enxoval de estudante e entrei para a escola, com o firme propósito de um dia escrever histórias como aquelas do Almanaque do Biotônico.

Quando eu tinha 12 anos, saímos do sertão, porque meu pai estava muito doente, e faleceu. Fomos morar numa chácara com meu avô materno. Aos 15 anos, desestimulado pela pobreza, e pela censura dos parentes, algumas vezes pensei que realmente não dava para continuar com aquele sonho de aprender ler a ponto de escrever histórias. 

Falei para minha professora de Português, a quem já havia contado minha história, e que me tratava com certo zelo. Disse-me para não desistir. No dia seguinte me traria um livro que me deixaria animado outra vez. Contei pra minha mãe ao chegar em casa. Deve ser algum livro de reza. Você precisa rezar mais, disse-me.

A professora entregou-me o livro, “Sem Família”, de Hector Malot. Minha rotina era sair da escola, por volta do meio dia, ir a pé, uns 7 km, até a chácara e trabalhar na roça até o sol se pôr. Mal esperei o fim do dia para fazer as tarefas correndo e começar a leitura.

Foi nessa ocasião que aprendi ler com o livro de ponta-cabeça. A candeia, na casa de meu avô, ficava de um lado da casa, e eu dormia do outro. A luz que chegava era fraca e perpendicular. Pela comodidade de ficar deitado, lia a página impar com o livro na posição normal, e a par, de cabeça para baixo, para pegar a fresta de claridade. Na verdade, fresta de penumbra. Passei a ler normalmente, de um jeito ou de outro.

Esse livro foi o segundo a me salvar. Ao ver o personagem naquele sofrimento terrível, sem lar, sem família, suportando frio, fome, humilhações e, ainda assim, mantendo acesa sua chama de esperança, fiquei com vergonha de fraquejar. Firmei o golpe. Suportei o período terrivelmente difícil. Não desisti dos estudos, nem abri mão de meu velho sonho: escrever histórias como aquelas do Almanaque do Biotônico.