Mais profundo que uma poça de sangue na calçada

Se você quiser ficar pra baixo, arrasado no chão: cocaína. Ela não mente, ela não mente, ela não mente: cocaína.  (Cocaine, Eric Clapton)

As substâncias mais entorpecentes que já usei até hoje foram as caipiroscas preparadas pelo Padre Hendrix (ultimamente, este meu amigo anda preso a um dilema: não sabe se larga a batina, as batidinhas ou as bacaninhas que o procuram na paróquia) e as pingas de engenho que meu falecido avô fabricava no seu alambique na roça. Mesmo assim não atingi aquele grau de doideira que me permitisse enxergar monstros sentados no sofá, políticos convertendo-se ao bem da comunidade, ou Elvis Presley trepando numa goiabeira. O máximo que consegui nestas investidas etílicas foi a certeza de que Elvis realmente morrera, azia e visgos de remorso: “nunca mais vou beber de novo”.

Eu moro numa grande metrópole. A população daqui anda em polvorosa por conta dos vários assassinatos de moradores de rua que têm ocorrido nos últimos meses, sobrecarregando padres, capetas, o noticiário das oito e os profissionais do IML. A tiros, facadas, porretes ou unhas — não importa a ferramenta de trucidamento —, dezenas de indigentes tombaram nas calçadas aniquilados por “algozes misteriosos”.

Incomodados com o cheiro de ferrugem no ar, receosos em lambrecar os seus mocassins baratos made in China nas inúmeras poças de sangue dos últimos dias, os cidadãos cobram das autoridades pertinentes — mesmo daquelas autoridades impertinentes mais autoritárias que, à surdina, fazem uma comemoração comedida por causa da “assepsia nos logradouros públicos” — rigor nas investigações e a detenção dos culpados.

A polícia jura que a polícia e os mordomos nada têm a ver com a epidemia de matança dos degredados, e nega que haja exímios grupos de extermínio trucidando pobres diabos na calada da noite. Experimentado em violência e maldade, o alto escalão da Segurança Pública pede para a população segurar mais esta onda: os indigentes estariam se autoaniquilando numa espécie de fagocitose humana várias vezes vista na História da Humanidade, desta feita, desencadeada pelo consumo desregrado de drogas, a gerar alucinações, doidice, dívidas com o vício e impiedosos acertos de conta.

Sacando a gravidade da faxina social que vigora na cidade, o Governo Foderal remeteu pra cá os fodões da investigação foderal a fim de tomarem tento da situação e estancarem esta sangria urbana, que ninguém mais suporta patinar em coágulos na calçada e perder o equilíbrio, não somente físico, mas, emocional. Não creio que uma força tarefa montada às pressas, ainda que composta por gente experimentada no combate à criminalidade, conseguirá mitigar um cenário de exclusão social bruta que perdura desde que o homem parou de andar de quatro e descobriu relâmpago é isqueiro. Excluir, maltratar iguais, é o que mais temos feito no decorrer da história.

Mesa de botequim é o supletivo dos filósofos vira-latas, o palanque dos pensadores ingênuos, o reduto dos artistas anônimos incompreendidos, o muro das lamentações dos desamados por mulheres desalmadas, o confessionário dos amantes traíras, um escritório descontraído ao ar livre para que os corruptos de carreira se esmerem em planejamentos estratégicos muito bem engendrados a fim de saquearem o erário nos meses vindouros. De tal sorte que, eu ouvia atentamente às explanações do Zé Galinha, pseudo-filósofo dos sêxtuplos chopes: “a Terceira Guerra Mundial já começou há muito tempo e as pessoas ainda não se deram conta…”.

De acordo com os virabrequins mentais de Zé Galinha, o incremento promissor do consumo de drogas no mundo (promissor, principalmente, àqueles que se enriquecem com o negócio escuso mais lucrativo do planeta depois da indústria da fé), aliado ao supra-sumo de brutalidade que ele desencadeia, representaria a “terceira grande guerra”, carregada de incontáveis megatons.

No Brasil, por exemplo, as cracolândias expandem-se mais que o PIB ou as contas secretas de políticos sacanas nos paraísos fiscais das Ilhas Fiji. Jamais se viu tanta pujança nos negócios ilícitos das drogas quanto na atualidade. E o que é pior: o tomate está mais caro que o crack.

Se José Saramago estivesse vivo, teria um baita roteiro no qual se inspirar a fim de escrever um romance tão fantástico quanto “O Ensaio Sobre a Cegueira”: um exército exponencial de viciados, armados com seus cachimbinhos de fabricação caseira — a casa, no caso, é este mundão véio e sem porteira —, não para de crescer, reduz o ser humano a uma condição crua e abjeta, coloca em risco iminente a vida no planeta. O último dos dramalhões.

Mesmo achando que aquele recente atentado à bomba ocorrido em Boston até que foi “bem feito ao belicista povo norte-americano” (desculpem pelo comentário insensível, exagerado; acontece que, àquela altura do happy-hour, o meu amigo já estava “alto” pra dedéu), Zé defende tolerância zero ao crime, nos mesmos moldes adotados pela cidade de Nova York durante a gestão do Prefeito Giuliani nos anos 90. “New York City is wonderful”, ele diz num inglês mal pronunciado, claramente embriagado, misturando pensamentos antagônicos pelos quais eu, sim, já perdera toda a tolerância.

Pedi a conta. Enquanto o garçom sacana somava errado o nosso consumo, tocou no rádio a canção “Cocaine”, do bom Eric Clapton, artista pop britânico, craque da guitarra e ex-viciado em drogas pesadas. A cocaína não mente; e o crack, muito menos: o ser humano — seja aqui, no Carandiru, em Damasco, Boston ou Nova York — é um péssimo exemplo a ser ensinado às crianças nas escolas. Só mesmo tomando mais uma caipirosca do Padre Hendrix…