A quarentena não pode ser mais uma desculpa para a violência doméstica

A quarentena não pode ser mais uma desculpa para a violência doméstica

Hoje as palavras não serão minhas. Cederei este espaço para o depoimento de uma das milhares de mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil. No primeiro domingo de isolamento social por causa do novo Coronavírus, foi espancada e estuprada várias vezes pelo marido. Sua fala está comprometida. Para sempre. De muitos modos. Sempre apanhou e nunca registrou boletim de ocorrência policial. Disse não pretender fazê-lo. O relato que reproduzo aqui foi gravado por uma conhecida dela no hospital. Ouvi, transcrevi e apaguei. Não sei porque decidiu falar. Ela, que nunca denunciou os crimes do companheiro, contou o maior horror vivido a uma desconhecida. Então, por respeito e gratidão, compartilho com os leitores da Bula as palavras dela. E clamo por socorro a mulher que só conseguiu pedir ajuda entre aspas.

“Eu tava no meio do almoço quando ele chegou e pediu para eu fritar ovo.  Meu mais velho não estava conseguindo trocar a fralda do mais novo. Só tenho homem dentro de casa e eles não ajudam muito. Fui pegar o menino para limpar sem responder que já terminava a comida. Estava de costas segurando o menino no tanque quando ele me pegou com força pelo pescoço. O menino caiu e não consegui segurar. Os outros vieram porque estão acostumados a ajudar quando o padrasto está nervoso. Ele prendeu os quatro na cozinha, pegou o pequeno — que é dele — e colocou no carro. Disse que iria embora. O menino tava chorando muito. Eu levantei para pegar umas roupinhas para ele, então. No quarto, o homem pegou a sacola e começou a tentar me enforcar gritando que eu estava abandonando meu marido e filho. Ele fica muito nervoso quando tá com a cachaça. Senti medo de morrer. Corri sem enxergar. Não tive tempo de pegar nenhum dos meninos. Senti muito medo porque ele estava com os ‘olho muito raivoso’. Escondi na casa de uma vizinha. Sabia que ele chegava lá. Mas não dei conta de ir mais longe [Silêncio]. Quando ele chegou [Suspiros], eu estava saindo do banho e a vizinha ajudava a me secar. Escutamos uns ‘tiro’. Ele entrou com o revólver. Amarrou ‘eu’ na cama e ela na cadeira. Ele gritava que ‘nois era sapatão sem vergonha’. Tirou a roupa da vizinha e fez tudo com ela. Depois veio para cima de mim. Fez xixi na minha cara, cuspiu, tirou minha roupa. Enfiou um ferro nas minhas ‘parte’. Mandava eu ficar calada mas eu tava era gemendo de dor. Eu tava chorando também porque a vizinha tava caída de olho fechado. Achei que tava morta. ‘Meu Deus’. Daí o homem batia e batia e batia a arma no meu queixo. Com força e força e força. Até estatelar esse pedaço aqui. Acho que dormi ou desmaiei. Num sei. Depois lembro de acordar com ele enfiando ovo na minha boca, nariz, orelha e [soluços e voz trêmula] e naquelas partes. E nada cansava, o capeta, gente. Ele veio para cima de mim outra vez com mais e eu vi um escuro. [Silêncio]. Só lembro de escutar um cachorro lá longe. Tava escuro, eu no banheiro, sem roupa e molhada. Num vi a vizinha. Tentei levantar. Caí. Fui arrastando pelo corredor e vi eles dois na sala. Ele tava em cima dela e ela parada. Tava arrastando e sem querer, fiz barulho e ele me viu. Acho que ele pensou que eu dava conta de levantar e fugir porque estava na porta. Tava estrupiada, moça. Perto da porta sem força de ficar em pé, moça. Fugia como? Daí sem parar a coisa que ele tava fazendo com a vizinha de novo, lá, daquele jeito, pegou a arma e atirou em mim. Nem vi que tinha pegado. Parece que congelei, sei lá. Ele ‘deve que espantou’. Acho que pensou que eu tinha morrido. E num é que ele veio para cima de novo, o possuído? Ficou batendo na minha cara e batia e batia e batia. [Silêncio]. Não lembro de mais nada. [Silêncio]. Tem uns ‘dia’ que tô aqui internada. O pulmão tá machucado, o queixo meio quebrado e esse tanto de ferro aqui deve ficar uns ‘mês na boca’. Minha vizinha, ouvi dizer, sumiu. Ninguém sabe dele. Meus ‘menino’ parece que tão em abrigo porque num tenho ‘parentada’ aqui. Meus ‘pai’…são morto… minha única irmã [choro intenso]. Eu não sei da minha irmã. Nem de mim eu sei [pausa de exatos dois minutos]. Acho que não vou morrer não. [choro intenso]. Mas, também, viver assim é tá viva?”

Assim terminou a entrevista, feita à distância. Sem me ver, ouvir e muito menos me conhecer. A mulher ferida e humilhada dispensou qualquer pergunta. Respondeu a si mesma em algo parecido a uma prestação de contas íntimas. Assim, só me restou compartilhar as palavras dela. E, por socorro, um alerta: a quarentena pelo controle da pandemia do Covid-19 não pode ser mais uma desculpa para a violência de gênero.