Não temos tempo de temer a morte, mas, por ora, vamos respeitá-la

Não temos tempo de temer a morte, mas, por ora, vamos respeitá-la

A vontade é de sentar e chorar. Mas, não posso sentar e chorar. Ainda é cedo para entrar em pânico. Como escreveram Gil e Caetano, na letra da canção “Divino, Maravilhoso”: “É preciso estar atento e forte; não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a interpretação de texto! Não se trata de destemer a morte, mas, por ora, vamos respeitá-la e seguir ao pé da letra as recomendações das autoridades sanitárias. A morte dói muito mais aos que continuam vivos. Portanto, por uma questão prática de humanismo e solidariedade, tomemos todos os cuidados.

Pode ser que o confinamento compulsório por que passamos e passaremos nos próximos dias seja útil para conduzir cada um de nós a uma reflexão oportuna a respeito do nosso papel no mundo. Parece claro que a nossa relevância individual no contexto do universo se restringe àqueles que nos amam: os amigos, os familiares, os admiradores. Bingo! Não somos a cereja do bolo. Somos farinha. Farinha do mesmo saco. E a gente vai ter que se engolir, colegas.

Calma lá. Não é preciso ser um presidente da república aloprado para saber que não há razões para histeria. O mundo vai ficar ainda mais estranho, mas, não vai se acabar. Aliás, pode ser que, a partir desta pandemia desagradável, desta guerra globalizada contra um inimigo competente e invisível, esteja começando uma era mais alvissareira. Por enquanto, ficarão adiados os encontros e, por conseguinte, os desencontros. As maiores provas de amor poderão soar como desamor: não abraçar, não beijar, negar o colo. Enquanto durar a quarentena, e pode ser que ela demore pra caramba, assistam a bons filmes, contudo, evitem os de Ingmar Bergman, por exemplo. São humanos, demasiadamente, humanos. Melhor optar pela comédia e pela fantasia. Vamos desanuviar.

Ouçam boa música para preencher o ambiente doméstico. Contra o vazio existencial, só o perdão e o amor próprio resolvem. Por razões óbvias, evitem o blues a todo custo. Se tiverem vontade de dançar, afastem os móveis e dancem. Mas, que seja o twist. Nada de “cheek-to-cheek”, troca de perdigotos e coisa e tal. Leiam os livros consagrados, com reconhecida qualidade técnica. Evitem autores malditos, como Bukowski, O Velho Safado. Já temos problemas demais sem eles. Não tentem. Por favor, não tentem.  

Melhor não beber bebidas alcoólicas durante o recolhimento domiciliar obrigatório. A não ser que seja um bom vinho, mas, sem o tilintar dos copos e dos corpos. Façam polichinelos. Exercitem os neurônios. Tirem os sapatos. Sentem no assoalho. Pratiquem jardinagem. Falem com as plantas. Desliguem um pouco a droga do telefone celular. Vejam sob uma nova ótica. Encantem-se com os filhos brincando pela casa, se tiverem filhos, se tiverem casas. Eles estão crescendo rápido demais e, vai chegar o dia em que vão dar o fora. Normal. Nada de novo no front. A vida é assim mesmo. Muitas vezes, parece uma brincadeira de mau gosto de Deus, um daqueles filmes de drama em que o bem vence no final. Às vezes, dá um frio na barriga e vem aquela sensação de que estamos vencidos. Mas, quem disse que o filme já terminou? As engrenagens que giram a humanidade ainda têm muito querosene para queimar. Podem crer. Fiquem em casa e durmam sob o silêncio do mundo.

Fotografia: MH Rhee