Um mundo triste como sempre, só que mais simples

Um mundo triste como sempre, só que mais simples

Acho que era uma Telefunken. A televisão colorida chegou lá em casa nos idos de 1974. Brasil versus Zaire. Três a zero do escrete brasileiro sobre a seleção dos negrões. Gols de Rivelino, Jairzinho e Valdomiro. Eu tinha 9 anos. Faziam dez que os milicos tinham tomado o poder das mãos dos civis. Agora, quem mandava prender e soltar — mais prender do que soltar — era o Geisel. Ingênuo, criança que era, aprazia-me mais o Presidente Médici. Além de se parecer fisicamente com o meu padrinho, tinha um sobrenome sonoro, engraçado. Eu o chamava de Garrafa Azul, ao invés de Garrastazu. Meus irmãos mais novos riam-se até mijar na roupa. Era a mesma roupa para a semana inteira. Perrengues de classe média. Fralda descartável? Ninguém usava isso. As lides domésticas davam-se às custas do tecido de algodão, do estômago resistente ao asco e das fraldas de pano quarando no varal. Cagava-se horrores naqueles dias.

Meu pai era funcionário concursado do Banco do Brasil. Tinha status de juiz, uma Kombi branca de segunda-mão que já tinha capotado pelo menos duas vezes e a famigerada doença de Chagas que lhe afetada os nervos, o coração e as tripas. Lembro-me de colocarem barbeiros presos dentro de um copinho de plástico e atá-lo ao antebraço para que os insetos sugassem o seu sangue moribundo e fossem estudados por um catedrático da faculdade de medicina. Depois da pesquisa, os barbeiros morreram, graças a Deus. Meu pai continua firme e forte.

Mamãe era praticamente uma escrava do lar em prol do casamento e da família. Mesmo trabalhando meio período como professora de escola pública em troca de um salário miserável que até hoje nos indigna, ela pariu quatro vezes, e não foi dentro de uma banheira, como fazem as focas. O sistema reprodutivo da época era bruto, sendo que os casais não tinham a prerrogativa de escolher a data da desova de acordo com a cabala, com a numerologia, com o horóscopo chinês, com premonição de vó ou com os feriados nacionais. Paria-se por vias naturais na virada da lua. Cesariana era artigo de luxo permitido tão somente naqueles casos de risco iminente de morte da mãe, do feto ou do obstetra.

Passávamos longe de escovar os dentes três vezes ao dia. Fio dental nem na praia se usava ainda. Certa tarde, nu, pesquisando o próprio corpo no espelho do armário, descobri que o cu era apenas um orifício escuro e minúsculo por onde rolava toda a merda, e não aquela fenda óbvia que partia a bunda em duas partes iguais. Durante anos fui enganado pela anatomia dos fatos mais simplórios. Acontece. Tomávamos banho com sabonete Carnaval, que impregnava a pele durante dias. Lembro-me das vezes que me tranquei no banheiro para ligar o chuveiro e me sentar no chão, simulando que me banhava. Depois, passava água no rosto e molhava os cabelos para completar o simulacro. Era um guri latino-americano com hábitos franceses. Nunca fui muito afeito a banhos, até que um doutor concluiu que aquelas manchas escuras no meu pescoço, que minha mãe jurava ser lepra, cobreiro ou moléstia incurável, nada mais eram do que sujeira acumulada pelo tempo, o famoso “macuco” que ele curou esfregando bolas de algodão embebidas com álcool. Só não apanhei ao chegarmos em casa porque mamãe não batia nos filhos. Vigia um bocado de violência doméstica para domar a meninada naqueles tempos.

No que tange aos bens materiais, sempre estivemos alguns estágios evolutivos atrás dos filhos das famílias ricas. Enquanto os filhinhos-de-papai calçavam incríveis tênis pretos das marcas Topper e Rainha, ainda pelejávamos com os baratíssimos Conga e Kichute, pisantes que duravam uma eternidade, sendo utilizados na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Durante anos, sonhamos com o maravilhoso autorama da Estrela que Papai Noel nunca trouxe. Sem ressentimentos. Deus dá o frio conforme o cobertor.

Ainda me lembro do asfalto fumegante cobrindo a ruazinha de terra e do primeiro telefone lá de casa: 225-3838. Discávamos para as pessoas enfiando o dedo indicador numa traquitana giratória de um aparelho que virou peça de museu. Fumávamos cigarros de chocolate. Matávamos uns aos outros com revólveres de espoleta. Pedalávamos uma bicicleta velha que passava de irmão para irmão, assim como as roupas, que se transformavam em herança compulsória dos mais velhos para os mais novos. Os joelhos ralados eram curados com um tipo de Mertiolate que arde até hoje. Piolhos eram implacavelmente exterminados, à moda antiga, um a um, à unha e vinagre. Disseminava-se um alerta geral contra tarados e ciganos que roubavam crianças. Ninguém morava em prédios. Brincava-se na rua, na chuva e nunca se teve notícia de alguém que morresse de tosse ou de raio. Toda casa tinha um pomar. Todo pomar tinha crianças. E crianças não trabalhavam para sustentar a casa, nem eram acometidas pela depressão e pelo desejo de morte, que eram coisas de adultos. Portanto, era um mundo triste como sempre, só que mais simples.