A era do instantâneo: bobeou, você vira leite em pó

A era do instantâneo: bobeou, você vira leite em pó

Estamos habitando — ou levitando, caso já nos tenhamos transformado em irrevogáveis avatares, seres cíbridos ou espectrais, deste surpreendente século 21 — a Era do Instantâneo, do Flash-Vivencial-Mob. Do #partiuimprevistos. Ops. Já é, como enfatiza a galera jovem, sempre antenadíssima.

Não temos tempo a perder, diz a música. Por isso, roemos todas as nossas unhas, cultivamos poderosas gastrites, como plantas regadas nos “vasos do stress” e parecemos, então, com aqueles animais domésticos endoidecidos, gatos, cachorros, rodando em círculos pela casa, no intento de morder a própria cauda — que, claro, jamais conseguimos.

Por que não conseguimos? O tempo, ou a compreensão dele, tornou-se nosso maior algoz, fustigando nossa pretensa produtividade, como areia movediça. O frenesi é opulento. Percebemos nossa vida acontecer em átimos, cotidianos zipados, fruições a jato (se é que podemos denominar este histérico fruir de gozo).

Saudades do slow time, dos bocejos compriiiidooos, conluios longos junto ao sol alegre das manhãs, reminiscências dos namoros argênteos e poéticos, tendo por madrinha e confidente a hipnótica lua, toda feminina, perfumando as noites estelares.

Outro sobressalto: as informações vêm aos borbotões. Ziguezagueadas, nos assolam céleres. Invadem-nos o cérebro, pluridimensionando-o. Decididamente possuímos inúmeras cabeças, tentando se equilibrar sobre nossos atônitos pescoços. Embora, por enquanto, não as decodifiquemos com os olhos da razão.

Cabeças eletrizantes, avantajadas. Refletindo aos solavancos, selecionando aos sobressaltos, pipocando intenções e desejos por entre neurônios agarrados a sinapses, como atletas em provas de alto desempenho olímpico-cognitivo.

(E isso para não mencionar a profusão de braços aflitos, agregados hoje ao nosso frágil corpo).
À era da informação — rebento da era digital — seguiu-se a era do conhecimento. Acontece que a referida informação vinculava-se ao consumidor, ainda passivo, subsumido aos ditames publicitários dos mass media, comunicação de um para todos, como ordenava , peremptoriamente, a senhora dona TV.

O consumidor, coitado, era conduzido docilmente como ovelha ao enorme e obediente rebanho. Encantado e pastoreado pela magia da tela, voyeur dos ditames imperativos da sedução do “Faça, Compre, Conquiste”, demandada pela hierática tela, encaixada, nos anos 1950, em móveis austeros de madeira.

Seja como eu! — bradava o belo astro ou a esplendorosa atriz dos comerciais televisivos, musa com cadeira cativa no imaginário social do pós-guerra, até seguramente o final dos anos 1980 e início de noventa —, quando outro demoníaco aparelhinho eletrônico, o celular, chegava para nos enfeitiçar com outra tela, pequenina mas… supostamente libertária.

Consumidor, aceite as merecidas palmas. A partir deste momento, e mesmo um pouco antes dos anos 1990, você já manipulava consoles de videogames, e assim começa a se sentir dono do seu nariz, no controle das suas vontades, com passaporte carimbado facultando seu direito de ir-decidir-e-vir.

Em decorrência, frente ao compartilhamento dos conteúdos da web, do advento das redes sociais (isso no comecinho dos anos 2000) você se constata mais empoderado, não apenas consumindo, mas dotado de nova competência: a de também produzir informação. De simples e passivo consumidor você sobe de posto — vira prosumidor.

Superdotado, multicerebral, com todos os comandos reunidos no manejo de joysticks. Exibindo indiscutível liderança incorporada ao desempenho rotineiro, a exemplo da hidra de sete cabeças, que, de tão venenosa, matava os homens somente com o hálito.

Na mitologia grega, encontramos outro ente horrendo: o Cérbero ou Cerberus (em grego, Κέρβερος — Kerberos = “demónio do poço”) um monstruoso cão de múltiplas cabeças e cobras ao redor do pescoço, que guardava os portões do Hades — o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem; além de destroçar os mortais que por lá ousassem se aventurar.

Que meda. #Aspessoaspira sentencia o meme no twitter.

Somos mutantes, fato. À era da informação sucedeu a era do conhecimento, que envolve informação digerida, fecundada, alquimizada. Tudo nos circunda incessantemente. Humildemente rendidos, revelamos: é impossível favoritar, discernir a contento o que nos trará conteúdo relevante e agregará valor às nossas aptidões profissionais, por exemplo.

Para o pensador francês Dominique Wolton a tecnologia avança mais rápido do que a comunicação. O futuro acaba sempre nos passando a perna, a cada noção de presente, anunciada pela sagacidade dos tempos.

Aliás, qual é o significado do presente na contemporaneidade?

André Lemos, estudioso da cibercultura, faz uma leitura da obra do sociólogo Michel Maffesoli, para quem a sociabilidade moderna, fixa, determinista, padronizada, estaria sendo substituída pela socialidade pós-moderna. No instante vivido nas relações corriqueiras.

André Lemos esclarece que “a socialidade seria um conjunto de práticas quotidianas que escapam ao controle social: hedonismo, tribalismo, presenteísmo. Uma multiplicidade de experiências coletivas baseadas no ambiente imaginário, erótico e violento do dia-a-dia. Estaríamos assistindo à passagem (ou a desintegração) do indivíduo clássico a (na) tribo. Um politeísmo de valores, onde cada indivíduo atualiza várias personas (blogs, Facebook, Orkut, Twitter), papéis efêmeros, hedonistas ou cínicos”.

Tudo é fugaz, passageiro, solúvel, granulado e liofilizado. Como leite em pó, em farta produção industrial.
Eventos se diluem por mágica. Traços de nossa humanidade desaparecem aos poucos, anuncia o alvoroçado homo ciberneticus de que os futurólogos e cientistas se ocupam sem reservas.

Essa figura a mais que perambula no espaço urbano. Misto frio de máquina e gente, um androide incomodativo, que nos ameaça esmagar emoções, passionalismos e demais ardores do espírito, em épocas vindouras.