Ela vai te comer

Ela vai te comer

Não tinha nada a ver com amor. Se muito, seria afeto. Empatia. Desejo. Paixão mal resolvida. Mania. E um bocado de solidão. Claire trabalhava como escritora-fantasma e estava absolutamente quebrada, falida, na lona. Devia impagáveis milhões aos bancos. Foi essa a herança que o marido lhe proporcionou. O tipo de suicida que tira a roupa na hora H. Encontraram-no nu no escritório, enforcado no ventilador do teto. Mamava na teta do erário durante anos, mancomunado com picaretas graúdos que engendravam um intrincado esquema político de corrupção que foi parar nos principais noticiários.

Tinham mais de 10 anos que Claire e Damian não se viam. Trabalharam juntos na Letras Mortas, uma editora rudimentar especializada em autores inéditos sem talento que tinham batido-as-botas sem publicar um livro sequer. O modus operandi da editora não mudava: assediavam os familiares valendo-se de argumentos sentimentaloides para convencê-los a bancar as publicações post mortem, como uma espécie de tributo aos defuntos, enviando para o prelo um monte de baboseiras, resmas e mais resmas de conteúdo literário absolutamente desprezível. Era batata.

Claire beirava os 50 e continuava bonita como nunca. Uma beleza triste, se é que isso existe. Havia tempestade nos seus olhos agateados. Apareceu numa tarde calorenta, depois de um longo e tenebroso inverno. Damian era um psiquiatra excêntrico, competente, que alçava o seu raciocínio clínico além das sinapses nervosas. Era temido por suas loucuras profissionais durante o atendimento a desequilibrados mentais numa clínica popularesca que se escondia na periferia. “Posso entrar?”, ela perguntou enfiando a cabeça pelo vão da porta. Não era uma consulta. Estava cansada de pensar em coisas. Tinha medo de surtar novamente. Só queria conversar, desabafar, trocar umas ideias, espairecer, amainar o ranço. Damian entendeu que, no fundo, no fundo, ela só queria foder.

Levantou-se da cadeira, lépido, desajeitado, derrubando objetos sobre a mesa onde jaziam prontuários de pacientes absolutamente sui generis que dariam livros com histórias formidáveis. Abraçaram-se no modo stand by e isso foi o suficiente para que os ponteiros do relógio rodassem vigorosamente para trás. Claire sentia como se pudesse trespassá-lo com o seu corpo alvo-fumegante, numa desarrazoada osmose entre as auras, as moléculas e os gametas. Damian, que não se metia em teses espiritualistas e outras patavinas, percebeu que toda aquela energia represada fatalmente os conduziria para um banquete saboroso há tempos adiado. Fez uma pausa no trabalho. Pelo interfone, pediu que Magra, a secretária maníaco-depressiva, lhes trouxesse um bule com chá não-alucinógeno para molharem os bicos.

Desde o fatídico colapso mental de Artaud, Claire curtia a viuvez num sítio que fazia parte do espólio. Era uma gleba centenária, primitiva, mal zelada, que só produzia ervas daninhas, pensamentos rancorosos e planos de invasão entre os líderes dos sem-terra que zanzavam pelo condado. Nada de cabras lilases, de lírios vorazes, de hortaliças mortiças. Era uma escritora experimentada com inspirações represadas. Via-se forçada a se enfurnar na pequena propriedade rural, longe dos entediantes convescotes das academias literárias, sob pena de ter o patrimônio arrestado pelos juízes locais. Se continuasse a morar naquele valioso chãozinho malcuidado, os tribunais não poderiam tomar o imóvel. Era assim que a lei previa.

Portanto, teve que se resignar e mudar da cidade para o campo, a fim de garantir a manutenção do único bem material sustentável que ainda lhe restava. O casal jamais teve filhos, apenas dívidas e uma extensa lista de mágoas. Dessa parte do relacionamento, ela sequer suspeitava, até o sujeito se matar, pateticamente, e começarem a pipocar os telefonemas dos jornalistas aloprados, as intimações do fisco, os aerogramas do judiciário, as cartas anônimas com ameaças de danos irreparáveis à sua integridade física e as incursões arbitrárias de cobradores enfezados, mal-encarados, ignorantes. Tinha medo pra de ser escorraçada por invasores no cio. Certos homens demandam motivos irrisórios para fornicar com mulheres sem consentimento.

Importunado pela clientela tresloucada que ameaçava colocar abaixo a recepção da clínica, Damian propôs que se encontrassem no café-musical no dia seguinte, para colocarem os assuntos em dia. Restava um lapso enorme entre ambos que merecia ser revisitado. Claire comentou que não bebia café nem fodendo por causa de uma taquicardia congênita. Damian fez piada ao dizer que a vida sem café não tinha o menor sentido. Claire rejeitou a cafeteria e disse que estava hospedada num hotelzinho fuleiro no centro da cidade onde esperaria por ele para um secarem uma garrafa de Cuspe com cerejas artificiais. Abraçaram-se. Pareciam colados.

Enquanto pedalava para casa, Damian ficou pensando que tipo de mentira aplicaria em Sophie, a companheira. Era um traidor bisonho, um amante destreinado. Mesmo assim, cuidou de criar uma desculpa plausível e apareceu na hospedaria no horário combinado. Estacionou a magrela na relva. Ajeitou a cabeleira. Conferiu se cheiravam bem as axilas. Entrou pelo hall sofrendo tremores juvenis. Sonhara com Claire a noite inteira, esparramando sêmen sobre a cama. Seu sonho teria secado em tempo?

Falou com o balconista efeminado que estava ali para se encontrar com a hóspede do apartamento 8. O sujeito deu de ombros. Parecia mais babaca do que a média. Damian cogitou relevar o juramento de Hipócrates para socá-lo na fuça, porém, o rapaz emendou, cheio de trejeitos, que a senhora Claire tinha partido de-manhã-bem-cedo sem sequer aproveitar o desjejum, ainda o mesmo que estivesse incluído na diária. “Como é que pode um ser humano viver sem café, não é mesmo?”, perguntou o rapazola.

Ilustração: Jack Vettriano