Como funcionam os neurônios de um apaixonado

Como funcionam os neurônios de um apaixonado

Gosto de beijar o canto do seu nariz, na junção com as bochechas. Você ri. Sabe que esse é nosso código de nada. É só um jeito que inventamos de passar o tempo diferentemente dos outros casais. Você franze o nariz, a gente brinda com um vinho quase bom, enquanto zomba do novo estagiário do seu trabalho e de como ele acha que a vida é séria. Coitado.

Compramos um peixe azul chamado Cleópatra (alguma coisa sobre personagens fortes, e belas, e profundas, e confusas, e importantes). Temos uma coberta quente e pequena, sob o qual precisamos nos apertar para caber. Você não é de conversar, mas é ouvinte e tanto. Cai um tufo de cabelo enquanto ouve minhas tagarelices. Um tufo de cabelo ouvinte e brilhoso que eu tiro da frente dos seus olhos argutos. De vez enquanto, você interfere na história fazendo pontuações sagazes. Eu rio. Você ri. A gente fica em silêncio uns minutos ouvindo o farfalhar dos nossos órgãos roçando os tecidos internos e do cobertor minúsculo roçando nossos pelos.

Conheço as linhas de sua nuca e da parte interna do pulso, as falhas da sua sobrancelha e as fraquezas do seu apetite. A gente trabalha junto, você arruma a mesa do jantar, eu ajeito a sala, enquanto Cleópatra testemunha nossos diálogos ora escassos ora desenfreados e não vê nexo em nada. Às vezes ela presencia um silêncio constrangedor, então a gente joga uma comida e ela fica feliz.

Sorrio quando você espirra, você me belisca por baixo da mesa quando tagarelo além da conta, então faço tudo de novo só para você ter que me tocar mais uma vez ali, naquela recatada cena obscena feita em público. Respiro as minúsculas partículas do seu perfume, as quais rescendem e dançam delicadamente até pousarem na pouca lucidez que sobrou no meu cérebro já nu.

Você entende que minha vida adulta às vezes é invadida por um lapso infantil. E a maturidade com a qual conduz minas recaídas não combina com seus imensos cílios de criança. Temos uma música, como todo casal ridículo. Já trocamos cartas, como todo casal ridículo. Fizemos uma lista de países invisitáveis e gastamos horas inventando palavras as quais ninguém teve a decência de criar ainda. Mas o que ninguém sabe é que conseguimos — nós dois — viver no apertado vão de loucura entranhado em minha sanidade.  

Gosto de beijar o canto do seu nariz, na junção com as bochechas. Você ri. Sabe que esse é nosso código de nada. É só um jeito que inventamos de passar o tempo diferentemente dos outros casais (afinal, eles existem no tempo e no espaço, enquanto a gente existe em mim, nos meus poros e veias. Um dia eu te conto).

“Supor o que dirá a tua boca velada é ouvi-lo já.” (Fernando Pessoa)