Gente chata dá câncer

Gente chata dá câncer

Bateram na porta. Laila fechou as pernas. Joe abriu para ver quem era. Havia três caras fardados com aquela velha silhueta sisuda que só os bonequinhos da Unlight Star Toy tem: um soldado, um cabo e um sargento.

— Bom dia. Qual o seu nome, senhor?

— Joe.

— Joe?

— Joe.

— Senhor Joe, recebemos uma denúncia de que alguém neste endereço estaria sendo feliz sozinho.

— Sozinho?

— Sozinho. Procede a informação, senhor?

— Não querem entrar e se sentar um pouco, rapazes? Posso lhes contar lorotas e servir um Cuspe enquanto conversamos.

— A vida é curta. A passagem por aqui é rápida. Mesmo assim, aceitamos a oferta de muito bom grado, senhor. Temos sede de devaneios. Mui agradecidos. Porém, será preciso discrição, cubos de gelo, e que o senhor esvazie aquela boneca, guardando-a num local mais reservado, por favor. Cabo, soldado, verifiquem se há vestígios de esmegma sobre o tafetá grená daquele sofá acolá. Eu detestaria manchar de porra a porra da minha farda verde oliva. Deus acima de tudo; meu traseiro em cima de nada.

— Deixa com a gente, sargento.

— Tenho um irmão caçula que enlouqueceu fazendo sexo com latas, sapatos e animais. Por o senhor simplesmente não procura uma mulher de verdade?

— Mulheres de verdade contam um monte de mentiras. Prefiro o silêncio retumbante do látex. O cheiro da borracha me deixa ligado, se é que entendem. Deveriam experimentar. Tenho os pulmões em plena saúde. Posso encher essa gracinha no piscar de um peido, se quiserem se aliviar com ela um pouquinho.

Ninguém se habilitou em se divertir com Laila. Naquela altura da conversa, já estavam todos sentados, com as pernas cruzadas, bebericando uísque minimamente à vontade.

— Como eu já disse, recebemos uma denúncia de que alguém aqui nesse domicílio estaria cometendo abusos, excessos de felicidade.

— Excessos de felicidade? Quem denunciou isso, sargento?

— Denúncia anônima, senhor. Não temos autorização de um ser superior para relevar a identidade desse completo desconhecido.

— Um infeliz anônimo, quem diria.

— Em Deus confiamos, senhor. Está grafado no livro sagrado e na moeda corrente. Não nos cabe lucubrar. Uma das missões mais nobres da polícia, além de tripudiar contra o cidadão de bem, é checar com critério as fofocas e garantir a ordem local. Tem gente que não suporta a felicidade alheia, sabe como é. Esperamos, sinceramente, que entenda e coopere com a autoridade policial.

— Eu entendo. Eu coopero. Aceitam mais uma dose?

— Então, o senhor admite a acusação de felicidade extrema solitária?

— Não sabia que a legislação vigente proibia um sujeito de ser feliz sozinho.

— Está previsto na Constituição de 1988, senhor. Eu juro. No duro.

— Já fui acusado de mentecapto, bicha, maconheiro, comunista e fã do Cazuza; agora, de cidadão contente, é a primeira vez.

— As coisas sempre podem piorar um pouco, sabia, senhor? Mora sozinho aqui?

— Moro com Laila.

— A boneca inflável não conta, senhor.

— Não é da sua conta. Para mim, ela conta sim e muito. Sua companhia é suave, leve. Laila levita pela sala quando eu a insuflo de gás hélio. Uma graça.

— Quando o senhor foi feliz sozinho pela última vez?

— Minutos antes de vocês tocarem a campainha.

— O senhor está pedante demais para um sujeito prestes a ser preso.

— Então, serei trancafiado? Que tempos são esses? Desde quando felicidade é crime?

— Já faz tempo. O senhor não ouve Willian Bonner? Não lê jornais?

— Os jornais impressos estão acabando. Tenho aversão à TV e à internet. Na verdade, ultimamente, tenho me dedicado à masturbação e à escrita de um novo livro.

— Isso parece uma baita perda de tempo, senhor.

— Ok.

— Ok o quê?

— Tudo bem.

— Tudo bem o quê?

— Isso lhe parece uma baita perda de tempo.

— E então?

— E então o quê, sargento?

— O senhor confirma ou nega que tem sido feliz sozinho?

— Sei lá. Pode ser. Não tenho certeza disso. Eu lhe pareço um homem sereno e alegre?

— De acordo com informações obtidas e compiladas neste dossiê de capa dura, o senhor amoleceu os nervos, assumiu um comportamento deploravelmente fausto, desapareceu das reuniões do condomínio, vendeu o próprio carro, adquiriu uma bike e foi visto assobiando “Mummy, I’m gonna get married with my doll” enquanto pedalava pro trabalho. Não bastasse todo esse comportamento repreensível de independência moral e de insuspeita ventura, o senhor foi flagrado inúmeras vezes chegando em casa com buquês de flores nas mãos. Não sei quanto aos comandados deste destacamento embriagado, mas, poderia jurar que, além de contente à beça, o senhor aparenta amar e amar e amar alguém com unhas e dentes, o que agravaria sobremaneira a sua situação frente ao poder judiciário.

— Não posso portar sequer um buquê de flores? E flores na lapela, pode?

— Infelizmente, não, senhor. Somente armas. O atual estatuto do desarmamento, reformulado e incrementado pelo ilustre Presidente Mojo Filter, prevê e permite o total de cinco armamentos per capita.

— Sei.

— As provas do seu contentamento individual abusivo são irrefutáveis. Gostaria que o senhor enrolhasse a garrafa desse saboroso uísque, vestisse uma roupa formal e nos acompanhasse até a chefatura onde o doutor aguarda pelo seu depoimento.

— Um médico espera por mim?

— Não. O delegado.

— Voltarei para casa em seguida?

— Não podemos garantir, senhor.

— Posso levar Laila e o compressor de ar comigo?

— Infelizmente, não, senhor.

— Livros. Posso levar livros, então?

— Para ler?

— Para ler.

— Apesar do seu inusitado pleito, penso que o doutor não vai se opor a isso.

— Com licença, então. Vou me trocar. Voltarei num instante.

Enquanto levavam os copos vazios para a pia da cozinha, o trio militar ouviu ruflares ruidosos que provinham do quarto. Apavorados com a possibilidade do sujeito ter se matado, acorreram ao quarto e se depararam com o cômodo vazio e um dragão de Komodo, com medo de altura, comendo nacos de carniça. A janela estava aberta e a cortina tremulando ao vento. Joe escapara voando. Deitada sobre a cama, Laila lhes sorria com os seus lábios murchos e paralisados.

 

Fotografia: Fran Carneros