Redes sociais: uma versão fictícia de nós mesmos

Redes sociais: uma versão fictícia de nós mesmos

Imagine se, para ter acesso a saúde, educação, emprego e diversos acontecimentos sociais você dependesse da aprovação virtual do outro. Aterrorizante, né? Esse é o mote do episódio “Queda Livre”, do seriado “Black Mirror”. Nele, a protagonista busca melhorar a sua pontuação numa rede social. Inicialmente, para ter desconto no aluguel. Ela contrata um consultor de imagem, melhora sua performance, prova do poder da aceitação e fica obsessiva em viver bem classificada. Para isso, sujeita sua existência às demandas da persona da internet. E provoca um interessante desenrolar de contratempos. Ficção inspirada nos desafios dessas novas formas de sentir mediadas pelas máquinas. E que nos leva a inevitável pergunta acerca de uma realidade que temos na palma da mão. O que se dá em uma sociedade que qualifica as pessoas segundo as fotos e postagens de perfis pessoais?

Antes de teorias, proponho um desafio de autoanálise. Revise as suas postagens em todas as redes sociais como se fossem de um anônimo. Responda as cinco seguintes perguntas usando apenas as informações disponíveis nesses meios. Cite pelo menos três problemas desse indivíduo. Que desafios profissionais ele ainda não venceu? Atualmente, essa pessoa tem medo de? O pior defeito dela é? Algum trauma a trava? Se conseguiu, parabéns! Caso contrário, continue respondendo as seguintes cinco próximas questões. Cite algum fato curioso ou conquista pessoal. Que lugares frequenta? Quais comidas prefere? Como se veste? Qual classe social faz parte? Conseguiu as respostas? Passe para terceira etapa! Cruze os resultados das fases 1 e 2 para definir estado de ânimo geral do suposto desconhecido. Se o resultado for: curtindo a vida, sem problemas graves ou fracassos, sempre capaz de resolver todos os problemas do mundo, então, você é como a maioria dos mais de 93 milhões de brasileiros nas redes sociais. Agora, fale a verdade. O seu perfil digital está de acordo com o real?

O Brasil é o primeiro país em acessos a essas páginas na América Latina, de acordo com dados da última pesquisa da agência eMarketer. Isso fala muito sobre nós. Selfies e fotos artísticas, frases feitas e autorais, opiniões bem argumentadas ou embasadas pelo vento. Registrar tudo que acontece. Antes de provar. Até mesmo sem estar. É assim que se vive hoje. Documenta-se a experiência com o objetivo de construir um eu que mora na nuvem. Que assume comportamentos específicos para a internet. Seja mostrando o que se come ou arrecadando fundos para causas sociais. Enquadrando seus pés ou fomentando lutas por mais direitos. Abrindo janelas para lugares maravilhosos que nunca visitaremos. Mobilizando protestos. Milhões de publicações, segundo a segundo, verdadeiras e mentirosas. Úteis e desnecessárias. Assuntos em massa, do ínfimo ao global, em formatos democráticos e ditatoriais. Conceitos que vão estabelecendo mais normas de conduta. Desde beicinhos horríveis para fotos que, confesso, nunca entendi a origem ou motivo daquilo. Até a angustiante obrigação de ser feliz sempre.

Como mãe de um bebê de 11 meses que persegue celulares desabafo minha preocupação. Muitos adolescentes e jovens nascidos com a vida na ponta dos dedos só conhecem o reconhecimento por meio de likes, compartilhamentos e curtidas. E ficam reféns do retorno das redes sociais para exercerem o pertencimento. É notável a frequência nos jornais dos casos de autoextermínio motivados pelo julgamento virtual. Um estudo realizado na França, mostra que o Brasil é o segundo país em casos de Cyberbulying dentre os 28 avaliados. Já a pesquisa da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais mostra que a quantidade de suicídios entre brasileiros na faixa dos 10 a 14 anos aumentou 65% e, 45%, entre 15 e 19 anos, no período de 2000 a 2015. A investigação não contempla as causas para o aumento das mortes. Especialistas que a avaliaram considerem o bullying nas redes sociais como uma das principais possibilidades. Portanto, minha gente, precisamos falar sobre isso. Por mais incômodo que seja.

Para Bauman, o uso de uma personalidade digital ilusória denuncia as deformidades comportamentais da realidade contemporânea: “A questão da identidade foi transformada de algo preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua própria comunidade. Mas não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que as redes sociais podem gerar é um substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se envolver em um diálogo”.

E dialogar não é falar para quem pensa igual. Muito menos acusar, acuar e açoitar. A natureza da ação é argumentativa. Não julgadora. E o diverso enriquece a discussão. Ainda segundo o sociólogo, nas redes sociais fica mais fácil evitar a controvérsia favorecendo que o indivíduo permaneça em uma zona de conforto. Apenas berrar os próprios conceitos, verdadeiros ou inventados, impede de ouvir novas vozes e o único que se vê é o reflexo de sua face. O indivíduo desobrigado de pensar diferente está menos apto a enfrentar a frustação. Tem menos habilidade para firmar-se em si sem afirmar-se narcisicamente. Trocando em miúdos: se você construiu uma personalidade virtual para esconder-se ao mesmo tempo que perpetua seus achismos de vida em larga escala, escolheu, invariavelmente, viver em uma bolha.

Muitos vão defender que a internet abriu as portas para a democratização da informação ao permitir que todos opinem. Concordo. Em parte. Sim, ótimo cair em rede assuntos antes pouco conversados. Legal ter uma enxurrada de pensamentos contrários circulando. O que não vejo acontecer, em grande parte das vezes, é o verdadeiro debate. Argumentado e provocativo. Respeitoso. Sabe aquelas discussões que te obrigam a sair do lugar? Nem que seja só para degustar desse novo ponto de vista? Disso estou falando. Mas o que percebo é bem mais parecido com uma defesa de tese. Em um movimento de forçar a ideia descer goela abaixo. Como estudiosa da comunicação, enxergo em muitos dos diálogos — virtuais ou reais já que a intolerância não é exclusividade de rede social — a energia focada no embate mais que na troca. E me dá a maior repulsa quando tentam me converter. Adoro discutir. Estou aberta a mudar. Aprendo a cada dia a escutar mais e falar menos. Só que eu batalho desde muito jovem para caber em mim, sabe? Por isso, não permito que ninguém me diga como devo ser. É assim que me preservo sã.

Entendo que muitas foram as transformações nos modos de expressão e de afeição derradeiros do desenvolvimento tecnológico. Estamos aprendendo esse novo jeito de experienciar. Tal qual no seriado, o risco reside no narcisismo como resposta a uma suposta inadequação social. Se “Narciso acha feio o que não é espelho” como canta Caetano Veloso, interpretar personagens no habitat de rede pode ser perverso e antidemocrático. Quando um grande grupo escolhe a mesma máscara para atuar termina por reforçar padrões comportamentais onde o diferente é acusado, julgado, condenado e banido. Simplesmente por não se encaixar em modelos. Isso empobrece o viver.

Reconheço as inúmeras vantagens dos relacionamentos virtuais. Por isso mesmo, defendo que refletir é levantar a bandeira de que ninguém tem a obrigação de ser #feliz, @politicamentecorreto ou agressivo.com.  Isso violenta a identidade de forma irreversível. Causa danos pessoais e sociais perigosíssimos como esclarece Bauman em sua célebre frase: “As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha”.  Nesse último pensamento, tomo a liberdade de trocar o “são” por “podem ser”. Não é a rede social a vilã. O estrago vem de como se usa a ferramenta.