A verdade nada mais é do que um recorte intransferível do que cada um vive e absorve

A verdade nada mais é do que um recorte intransferível do que cada um vive e absorve

Adoro como os jovens sempre têm razão. Quanto mais jovem se é, mais razão se costuma ter. E, quando um velho se faz de teimoso e bate os pezinhos por lhe competir toda a certeza do mundo, não posso negar alguma inveja por sentir nele certa alma juvenil. Sempre imagino que velhinhos teimosos desceriam rampas perigosas de skate, se a artrite lhes desse trégua.

O tempo passa e vai ficando claro que a “verdade” nada mais é do que um recorte intransferível do que cada um vive e absorve. Em um de seus livros, a escritora Rosa Montero, numa belíssima metáfora, contou que certa vez vira uma baleia enorme passando a dois metros do barco em que estava. O cetáceo — bicho curioso que gosta de espiar estranhos — exibiu-se fragmentadamente: carne e mais carne emergindo e imergindo quase logo em seguida, de maneira que, ao final, ela havia e não havia visto o bicho. Havia porque sem dúvida lhe fora espectadora, mas não havia porque, em momento algum, teve a chance de juntar suas partes e enxergá-lo por inteiro. Assim seria a vida: grande demais para se ver ou manipular, como a baleia. É por isso que a fragmentamos e formamos verdades desde pequenos.

No tempo de Cristo, era normal que enxergassem anjos e demônios; em algumas partes do mundo, é de praxe que vejam ETs e ninguém questiona se é verdade ou não, porque as mentes já se moldaram para concebê-los como parte natural do cenário. Agora imagine se no meio de algum feudo antigo brotassem uns brasileiros tocando samba, discursando contra o machismo, ou exibindo uma tela de Romero Britto como referência de arte (e aí cito Romero por mero amor à polêmica, porque há traços de teimosia que nunca nos deixam).  Seriam verdades descontextualizadas, inconcebíveis e absurdas. É assim grande parte das conversas em que duas pessoas têm razão. Uma tenta enfiar seu samba no feudo da outra e a balbúrdia está feita.

Ignorar a criação, as referências, a vivência, o sofrimento, os parâmetros, a cultura do outro é encarnar a barbárie e não compreender, de antemão, a essência do que se chama civilização. Nascemos mesmo para ser diversos e é na diversidade que mora a graça. Cada um se agarra ao espectro da baleia que consegue enxergar. Não há como negar alguma patologia em quem, por toda vida, caminha sobre a razão absoluta. Não que essa compreensão seja um desconvite ao debate, evidentemente. Mas que o debate — ainda o mais acalorado — seja sobretudo a coroação de como a diferença nos força a ser melhores, pois que incita a argumentação, a tolerância, a humildade, a capacidade de oitiva e tantas outras qualidades que amamos nos outros, mas detestamos praticar.

Saber demais é uma perda de tempo. “Não sou jovem o bastante para saber de tudo”, disse James Barrie, autor de Peter Pan. Nunca estamos prontos e quase sempre nos transmutamos ao longo da vida; nunca seremos senão rascunhos do que na verdade queríamos ser (que dirá um dia dominar um excerto sequer da razão!). Então fincar pé e não arredar quase sempre é podar o outro e — pior! — as possibilidades de si mesmo.