Sempre que se sentir triste, sonhe

Sempre que se sentir triste, sonhe

Eu saquei que tinha morrido quando comecei a cruzar por um monte de gente que tinha desaparecido antes de mim. Eu não somente vi a famosa luz branca ofuscante no final do túnel, como a trespassei, mergulhando na brancura de um descampado que, certamente, seria o Paraíso. No início, fiquei meio intrigado. Eu merecia céus?

Tão acostumado à competitividade da vida terrena, não me deparei com nenhuma banca examinadora das almas novatas, supostamente responsável pelo escrutínio dos desencarnados nos portões do Paraíso. Pensei em alma, pensei em carne, e senti uma vontade profunda, profana, de comer um belo espetinho de picanha. Mas continuei a minha célere caminhada rumo à eternidade.

Nada de São Pedro, muito menos Deus e Menino Jesus. Ora, era querer demais ser recepcionado pelo pessoal do alto escalão do Além, logo eu, uma ovelha desplugada das igrejas e que tantas punhetas engendrei em plena Semana Santa. Lembro-me perfeitamente de ter comido as fotos de Rita Cadilac numa Sexta-feira da Paixão (Sangue de Cristo tem poder!). É isso mesmo: esse povo do Céu sabe de um tudo da vida da gente.

Senti um alívio malandro ao constatar que não teria o meu prontuário lido, relido e comentado em voz alta pelas entidades abalizadoras do Céu. Se eu entrara direto assim naquele seleto recinto, sem precisar pular catracas ou me esgueirar, é porque eu era um cara gente boa pra caramba (sem notar, eu acabara de cometer mais um pecadinho de soberba).

Assim que pisei o solo branco do Éden, pensei: “Putz, vou conhecer Elvis e John Lennon pessoalmente”. Sabe leitores, quando se entra no Céu pela primeira vez, ficamos meio atordoados, assoberbados, autoconfiantes, metidos a besta mesmo.

Tive sensação idêntica ao estrear fuleiragens num prostíbulo. Como era um adolescente dos mais babões, a vontade de pegar de uma só vez todas aquelas moçoilas desinibidas dispostas ao sexo total era enorme. Com muito custo e negociação (que Deus me perdoe!), aproveitei uma promoção relâmpago do covil e fiquei com Madalena, fora os trinta e oito chatos pubianos, milhões de gonococos e muito ressentimento.

Arre! Eu não devia ter comparado o Céu com um bordel, inda mais num momento solene e único como aquele. Só que eu já estava dentro do Paraíso. Com certeza, o meu raciocínio sacrílego passaria incólume aos anjos, santos e demais seres celestiais leitores da mente humana. Não posso mentir pra vocês: naquele cenário pacificador, eu me sentia tão bem quanto o ladrão arrependido que foi crucificado ao lado de Cristo. Cara, eu simplesmente estava sendo aceito!

O primeiro parente desaparecido que encontrei foi meu avô, todo vestido de branco, montado no Tartaruga, um cavalo das antigas. Deus era foda. Eu jamais supunha fosse permitida a entrada de animais de estimação para a eternidade. “Eita, lugarzinho porreta!”, comentei com um arcanjo que passou voando sobre nossas cabeças.

O velho saltou do cavalo velho como se não fosse um velho e me abraçou demoradamente. Pude sentir o familiar cheiro de cigarro de palha nos seus cabelos grisalhos, o que me arrastou de volta à infância na fazenda. Minha memória, de repente, ficou vívida, aguçada. Senti então um remorso danado por quase ter matado um passarinho com o estilingue, aos nove anos.

Mesmo tão antigo como um dos tonéis de carvalho nos quais envelhecia pinga, meu avô já tinha aprendido com os mentores celestiais como ler os pensamentos. Assim, ele me confortou com algum tipo de palavrório roceiro, simplista, do qual não me recordo, pois eu não parava de chorar.

“Uau! Este avant-première vai ser ducaralho”, pensei, lamentando novamente o adjutório de palavrões. De súbito, vieram-me à mente os nomes de todos os parentes mortos, listados em ordem alfabética que era pra não esquecer nenhum defunto, muito menos prestigiar fulanos em detrimento de beltranos. No Céu é só amor, e ele não se mede com polegadas. As regras no Paraíso também são claras, Arnaldo.

Não demorou muito notei que alguém puxava a barra da minha calça (eu trajava uma impecável roupa branca que jamais usei quando caminhava na Terra). Era uma criança, um sobrinho morto ainda aos três anos de idade, arrancado da convivência familiar por conta de um acidente automobilístico dos mais tristes.

Vocês nem imaginam: não dá pra descrever com os vernáculos conhecidos o meu sentimento naquele instante. Outro dia mesmo, antes de eu morrer, enquanto atirava milho aos pombos numa praça (e eles me atiravam os seus fungos, piolhos e bactérias), eu me detive a pensar como estaria o meu sobrinho se ele tivesse sobrevivido e crescido.

O tom dos cabelos teria mudado? Qual seria o timbre da voz? Pra que time de futebol ele torceria? Ou ia gostar de natação? Ele me amaria mais ou menos do que os seus brinquedos de menino? Certo dia, o pai dele (meu irmão) confessou-me que, ao contrário do que se imaginava, ele gostava muito de sonhar com o guri para ouvir a sua voz, sentir o cheiro, tocá-lo. O que vocês acham, leitores: as dores são comparáveis? A comparação, ao menos, presta-se a sofismar o sofrimento, o que já é uma grande vantagem.

Andar a esmo pelo Paraíso tem dessas coisas. Embora cretino, sentia-me meio filósofo. Então abracei o moleque como se estivesse desbancando o próprio Cristo. “Vinde a mim as criancinhas é o cacete! O guri agora é meu. Ninguém tasca”, pensei, sendo impróprio, rude e ingrato outra vez.

A parentalha morta foi se achegando pouco a pouco e, quando dei por mim, já éramos um bando de zumbis animados a ocupar um dos infinitos jardins do Éden. Logo os amigos deram as caras para as boas vindas. Ninguém envelhecera uma ruga sequer. Sem sacanagem: duvido que os cirurgiões plásticos fizessem carreiras tão promissoras num lugar como aquele.

Era emoção que não acabava mais. Eu não ouvi nenhum pássaro-preto cantando na calada da noite. Aliás, avisaram-me logo que no Céu nunca anoitecia, uma notícia que me deixou apreensivo. “Uma eternidade sem a lua… Como é que vai ser?”, lucubrei, a duvidar das reais intenções do Altíssimo.

De repente, ouvi a canção “Imagine”. Olhei pro alto de uma pedra branca (naquele lugar tudo era branco, exceto o povo; por sinal, havia muito mais gente negra do que caucasiana, o que reforçava o histórico mundial de agruras da negritude) e avistei John Lennon de terno branco, tocando o seu piano branco de cauda. Ao lado dele não estava a Yoko Ono (todo mundo sabe que a japonesa continua vivinha-da-silva em Nova York), mas o próprio Elvis trajado com o indefectível manto branco cravejado de pedrarias falsas e lantejoulas multicoloridas. O Papa Bento XVI, se ainda fosse Papa, talvez cobiçasse aquela indumentária do Rei mais do que o próprio Manto Sagrado.

Agora só faltava dar de cara com o Todo Poderoso. Mas fui impedido daquele encontro casual incrível — e que seria de um constrangimento igualmente incrível pra mim — pela mão pesada de Dona Cleonice, a diarista. “Acorda, doutor! São quase onze horas…”, ela reclamou a tropeçar em garrafas pelo chão da casa e quase cair. “Ateu filho-da-puta!”.

Não me xingue assim, Dona Cleonice. Tenha a santa paciência. Deste jeito a senhora acaba não entrando no Reino dos Céus. Então fui tomar um banho e escrever esta crônica.