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O mercado negro dos livros raros: como um exemplar vira uma “Ferrari”

O mercado negro dos livros raros: como um exemplar vira uma “Ferrari”

Foi em 24 de abril de 2024 que uma ação coordenada por autoridades de vários países europeus colocou um assunto discreto sob luz forte: livros raros podem valer o suficiente para alimentar uma rede criminosa que cruza fronteiras. Europol e Eurojust informaram que a operação mirou um grupo suspeito de roubar ao menos 170 livros antigos e raros de bibliotecas europeias, com prejuízo estimado em € 2,5 milhões, além de uma perda patrimonial descrita como impossível de medir.

Os alvos não eram “livros velhos” no sentido comum. Eram peças com procura internacional e valor de coleção. As autoridades associaram parte dos itens a autores russos consagrados, como Pushkin, Gogol e Lermontov. O mesmo comunicado registrou um ponto que ajuda a entender por que a recuperação costuma falhar: parte do material teria sido vendida por meio de casas de leilão em Moscou e São Petersburgo, o que, no relato institucional, tornou alguns exemplares irrecuperáveis.

O Eurojust também detalhou o andamento da apuração. A agência disse que passou a apoiar o caso em novembro de 2023, promoveu três reuniões de coordenação e ajudou a montar, em março de 2024, uma equipe conjunta de investigação entre autoridades de França, Lituânia, Polônia, Geórgia e Suíça, com participação da Europol. No dia da ação, segundo o Eurojust, um centro de coordenação conectou, ao mesmo tempo, as equipes em campo.

O que faz um livro custar como um carro

Um exemplar não vira ativo apenas por causa do texto. Em livros de coleção, o preço costuma depender de três frentes: qual edição, emissão e variante o objeto representa; em que estado físico ele se encontra; e que documentação existe sobre o caminho percorrido pelo exemplar ao longo do tempo. Isso aparece em descrições técnicas, fotos, notas de procedência e, quando a quantia é alta, histórico de compras e vendas que o próprio mercado usa como referência.

Essa lógica tem um efeito direto. O mercado costuma premiar conservação e completude, não a ideia repetida sem cuidado de que “primeira edição” garante fortuna. A “Antiquarian Booksellers’ Association of America”, entidade profissional do setor, afirma que a condição tende a pesar mais do que a impressão e que a presença ou ausência de sobrecapa pode mudar de forma grande o valor e o interesse do comprador.

Por isso, dois exemplares do mesmo título chegam a preços muito diferentes. Um volume sem jaqueta, com reparos invasivos ou falhas no miolo perde atratividade mesmo quando é bibliograficamente correto. Já um exemplar muito bem preservado pode ser raro por um motivo adicional: a raridade do próprio estado de conservação.

O topo do mercado continua ativo

A economia das raridades não vive de lembrança distante. Há resultados recentes que seguem funcionando como referência e, também, como termômetro de apetite do público. No mês de maio de 2023, o “Codex Sassoon”, manuscrito bíblico antigo, foi vendido por US$ 38,1 milhões em Nova York, em um resultado amplamente noticiado.

Codex Sassoon
O Codex Sassoon é tão raro que antecede em séculos a maioria das Bíblias hebraicas conhecidas, funcionando como um elo direto entre as primeiras tradições manuscritas e o texto bíblico moderno

Já em setembro de 2024, outro manuscrito, conhecido como “Shem Tov Bible”, foi vendido por US$ 6,9 milhões em leilão em Nova York, com registro público do resultado.

Esses números não são rotina no colecionismo. Ficam no alto, como teto, e acabam puxando o resto da cadeia: avaliadores, livreiros especializados, casas de leilão, seguradoras, colecionadores e instituições. Para que esse circuito funcione, o item precisa cumprir um requisito central: ser autêntico e apresentar documentação que sustente o que está sendo vendido.

Onde começa o ilícito: a troca silenciosa e a corrida contra o tempo

No caso europeu de 2024, comunicações oficiais registraram um tipo de golpe que dispensa violência visível. Suspeitos teriam usado identidades falsas e se apresentado como pesquisadores para solicitar acesso a obras em bibliotecas. Enquanto um integrante distraía a equipe, outro faria a troca do original por uma cópia. O Eurojust relatou ainda que, em outras ocasiões, houve invasão direta de bibliotecas.

O que pesa é o atraso. Quanto mais tarde uma biblioteca percebe a ausência do original, maior a chance de o objeto circular em novas mãos, em outros países, e entrar numa venda em que a disputa deixa de ser “onde estava” e passa a ser “quem consegue provar” o quê. O Eurojust afirmou que, antes de alguns roubos, integrantes do grupo visitaram bibliotecas e retiraram livros do mesmo tipo daqueles que seriam levados, uma forma de preparação que ajuda a calibrar o acesso e a rotina do lugar.

A partir daí, o ilícito não se resume ao furto. Ele passa pela tentativa de tornar o objeto vendável. E isso exige alguma história de procedência, ainda que incompleta ou fabricada.

O caso de 2025 nos EUA: quando o golpe imita a rotina

A substituição por cópia voltou a aparecer em outro contexto, descrita em um caso divulgado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos em 7 de agosto de 2025. Segundo a acusação, Jeffrey Ying, 38, de Fremont, teria furtado aproximadamente US$ 216 mil em manuscritos chineses raros e históricos de um sistema de bibliotecas universitárias entre dezembro de 2024 e julho de 2025. O comunicado afirma que ele usou os nomes “Jason Wang”, “Alan Fujimori” e “Austin Chen”, e que foi acusado de “theft of major artwork”, crime federal com pena máxima de até 10 anos.

Segundo o Departamento de Justiça, os manuscritos não ficavam em circulação regular e precisavam ser reservados e retirados. A acusação descreve que Ying levava as peças para casa por alguns dias e devolvia um manuscrito “dummy” no lugar do autêntico. O Departamento de Justiça afirmou ainda que a biblioteca percebeu a ausência de itens e que uma apuração inicial apontou que os livros tinham sido vistos por último por alguém que se apresentou como “Alan Fujimori”.

Regras do comércio e o peso da reputação

Quando a quantia aumenta, o mercado formal tenta reduzir risco com regras claras e com uma cultura de devolução em caso de problema. Associações de livreiros antiquários mantêm códigos que transformam autenticidade em obrigação profissional. O código de ética da ABAA afirma que o membro deve atestar autenticidade e fazer um esforço razoável para verificar a natureza do material. Se um item oferecido como autêntico se mostrar não autêntico ou questionável, o texto prevê devolução com reembolso integral, ou acordo equivalente.

Há compromisso semelhante em códigos internacionais de entidades do setor, com previsões de devolução e reembolso quando um item não corresponde ao que foi vendido, e com exigência de transparência caso o material volte a ser colocado à venda após um problema identificado.

Regra nenhuma barra, sozinha, o crime. Ainda assim, muda o caminho que um item consegue percorrer. Intermediários que seguem esses códigos tendem a exigir mais documentação, registrar melhor transações e aceitar menos lacunas.

Bancos de itens desaparecidos e a virada da procedência

Existe também uma infraestrutura voltada a uma pergunta que, em outros mercados, vira apenas suspeita e aqui vira pesquisa: consta como roubado? O “Missing Books Register”, ligado a uma entidade internacional do setor, se apresenta como plataforma para registrar e buscar livros raros e manuscritos roubados ou desaparecidos, com uso voltado tanto a instituições quanto a compradores.

No dia 17 de dezembro de 2025, essa mesma entidade anunciou a primeira versão do “ILAB Provenance Guide”. O documento foi apresentado como trabalho em andamento, com objetivo de fortalecer confiança e transparência no comércio internacional de raridades. Depois de furtos recentes e da repercussão desses casos, a procedência deixou de ser um tema apenas de especialistas e passou a ocupar o centro das precauções.

Bibliotecas entre acesso e proteção

Bibliotecas e arquivos com coleções especiais também tratam o risco como parte do trabalho. Há diretrizes públicas voltadas à segurança e à resposta a furtos em coleções especiais, com recomendações sobre prevenção, treinamento e ações quando surgem suspeitas. A intenção é reduzir vulnerabilidades e acelerar a resposta, porque, quando o roubo demora a ser percebido, a chance de retorno cai.

O golpe de substituição por cópia atinge um ponto sensível. Essas instituições existem para dar acesso, mas também precisam proteger itens que podem ser únicos ou muito raros. O desafio não é só evitar que alguém saia com um volume. É evitar que alguém leve o original e deixe um substituto por tempo suficiente para que a ausência passe despercebida.

Um mercado guiado por provas

No comércio de raridades bibliográficas, o objeto vale pelo que é, pelo estado em que está e pelo que consegue demonstrar sobre sua trajetória. Quando autenticidade, descrição, conservação e documentação são fortes, o preço sobe e pode se aproximar do universo de bens de luxo. Quando esses elementos falham, o preço cai ou o item deixa de circular nos canais mais exigentes.

A ação europeia de abril de 2024 mostrou como um grupo pode explorar falhas de controle, com identidades falsas, distração e trocas por cópias, além de invasões diretas em alguns casos. Segundo o Eurojust, a operação resultou na prisão de quatro suspeitos na Geórgia, na busca em 27 endereços na Geórgia e na Letônia, na recuperação de um livro roubado e na apreensão de muitos outros volumes que ainda precisavam ser examinados. O órgão afirmou que dez testemunhas foram ouvidas e que mais de cem policiais e promotores participaram.

O caso americano, divulgado em agosto de 2025, trouxe uma variação do mesmo golpe. A acusação descreve empréstimos, devoluções falsas e a fabricação de “dummies” com apoio de materiais encontrados em um quarto de hotel, como manuscritos em branco, papéis no estilo dos itens retirados e etiquetas prontas associadas às obras. No meio disso, o mercado formal busca reduzir brechas com códigos de ética, regras de devolução, bancos de itens desaparecidos e uma atenção crescente à procedência. Para quem compra e para quem protege acervos, a diferença continua dependendo do que pode ser demonstrado, por escrito, sobre a origem do exemplar e sobre o caminho que ele percorreu.