“Jay Kelly” é, provavelmente, o filme de Noah Baumbach que mais se aproxima da gramática hollywoodiana. O cineasta, conhecido inicialmente por sua ligação com o cinema Mumblecore, marcado por baixo orçamento, atmosfera alternativa e narrativa mais intimista, agora experimenta uma faceta maior, uma embalagem mais industrial e claramente inserida dentro do mainstream. Mas também vale lembrar que ele escreveu, ao lado da esposa Greta Gerwig, o roteiro de “Barbie”, fenômeno da indústria que estreou em 2023. Em “Jay Kelly”, cujo roteiro foi coescrito com Emily Mortimer, George Clooney interpreta o protagonista que dá nome ao filme. Jay é um ator veterano que decide perseguir a filha caçula durante uma viagem à Europa, logo após ele brigar com um amigo de longa data, Tim (Billy Crudup).
Além da desavença, ele também enfrenta a morte recente de outro amigo, Peter (Jim Broadbent). Ver sua filha ganhar independência enquanto lida com a perda de dois grandes vínculos, um pela morte e outro por um desentendimento, força Jay a revisitar decisões profissionais e afetivas. Ao lado de seu agente Ron (Adam Sandler) e de parte de sua equipe, ele embarca numa viagem de trem pela Europa, interage com pessoas comuns e tenta ressignificar aquilo que restou de sua própria identidade.
Ecos da Era de Ouro e um olhar para dentro
A composição de Jay remete a Cary Grant e a outros astros da era clássica de Hollywood. Ainda assim, o filme mistura naturalismo com poesia e memória, evocando obras como “Bardo, Falsas Crônicas de Algumas Verdades”, de Alejandro González Iñárritu, e “Oito e Meio”, de Federico Fellini, mas sem assumir o surrealismo ou a musicalidade desses filmes. Aqui, tudo funciona mais como um delírio temperado por reflexão, nostalgia e melancolia.
Para justificar sua presença na Europa e despistar a filha, Jay aceita participar de uma homenagem por sua carreira. O detalhe é que ele havia recusado diversos convites semelhantes ao longo dos anos, considerando tais tributos cafonas e desinteressantes. A homenagem, no entanto, torna-se um dos momentos-chave da narrativa: é ali que Jay encontra um vislumbre da resposta para sua jornada espiritual. Ele passa o filme inteiro questionando se suas escolhas valeram a pena, e se, diante da possibilidade, repetiria tudo exatamente do mesmo jeito.
Técnica como espelhos da psique
A montagem alterna entre flashbacks, contemplações silenciosas e discretos alívios cômicos, deixando lacunas que não existem para serem preenchidas. Baumbach não busca criar uma biografia completa de um homem fictício, mas convidar o espectador a preencher os espaços vazios com sua própria experiência emocional. A trilha sonora de Linus Sandgren é sentimental sem escorregar no melodrama, enquanto a fotografia, contrastada, levemente granulada e guiada por ângulos que acentuam profundidade e descompasso, produz efeitos sensoriais muito específicos no público.
Entre esses efeitos, destacam-se a desconexão entre corpo e mente, como se Jay estivesse fisicamente num lugar, mas mentalmente noutro, e a sensação de que ele ocupa permanentemente o centro de um palco, como se sua própria vida fosse uma encenação involuntária. É uma fotografia que aceita a imperfeição, que abraça o desconforto como linguagem visual.
Temas baumbachianos em território mainstream
Apesar do polimento comercial, “Jay Kelly” preserva pilares temáticos que atravessam a obra de Baumbach. Persistem os conflitos familiares cotidianos, nunca tratados como grandes tragédias, mas sempre carregados de intensidade emocional que explode nos pequenos gestos, como acontece na vida real. Os diálogos são longos, com ritmo orgânico e humor seco; muitas falas soam improvisadas, contendo observações sarcásticas afiadas, mas nunca moldadas para arrancar risadas óbvias.
Baumbach também se dedica aos incômodos do dia a dia: aquilo que não é grandioso, mas molda silenciosamente quem somos. Em seu cinema, o que importa não é o acontecimento, mas o efeito íntimo que ele produz, a sensação de inadequação, de impostura diante de si mesmo, e a importância desmedida atribuída ao olhar do outro. Seus personagens são facilmente reconhecíveis porque suas dores e hesitações são profundamente realistas e corriqueiras. “Jay Kelly”, mesmo embalado por uma estética mais envernizada, permanece fiel àquilo que Baumbach faz melhor: transformar o comum em algo revelador.
★★★★★★★★★★



