A luz azulada que escapa de uma televisão ligada tarde da noite sempre teve algo de conspiratório, quase um pacto silencioso entre quem assiste e aquilo que pulsa na tela. Em “Eu Vi o Brilho da TV“, essa claridade funciona como porta de entrada para um mundo onde Owen, vivido por Justice Smith, encontra mais verdade do que nas conversas truncadas com adultos que parecem sempre falar outro idioma. A fascinação dele pela série “The Pink Opaque“ nasce quando Maddy, interpretada por Brigette Lundy-Paine, se torna o primeiro ponto de contato com alguém que reconhece seus estranhamentos sem solicitar explicações. O enredo começa nesse encontro tímido no corredor da escola, mas se expande para algo mais vasto: uma promessa de que a vida pode ser mais do que uma sucessão de dias cinzentos em subúrbios onde todos fingem normalidade.
Conforme Owen cresce, sua rotina passa a ser moldada pela série, que funciona como mapa afetivo, refúgio e lente interpretativa. A cada episódio assistido em segredo, ele confirma que existe um espaço onde suas inquietações não são tratadas como desvios. O curioso é que esse universo fictício, com suas criaturas exageradas e dilemas sobrenaturais, parece formular perguntas que a vida cotidiana evita. O roteiro atravessa essa dualidade: de um lado, a vida familiar marcada por silêncios desconfortáveis e a presença de um pai que enxerga as diferenças do filho como obstáculos a serem eliminados. De outro, uma narrativa televisiva que acolhe sua sensibilidade ao invés de domesticá-la. Ian Foreman, na versão mais jovem do personagem, acentua essa sensação de deslocamento precoce, como se a infância fosse o primeiro território onde as brechas entre ele e o mundo se tornassem evidentes.
As aparições posteriores de Maddy quebram o ritmo previsível da vida dele. Ela retorna anos depois para anunciar que The Pink Opaque não é apenas uma série e que algo ali se dirige a eles de modo direto, quase íntimo. O gesto dela tensiona tudo que Owen vinha tentando manter sob controle: a adequação escolar, a rotina laboral sem perspectivas, a tentativa de interpretar seus próprios sinais interiores como simples nervosismo passageiro. O filme desenha esse conflito sem pressa, deixando que as hesitações do personagem componham o centro emocional da narrativa. A sensação é a de acompanhar alguém que tenta negociar com uma versão de si que insiste em ser ignorada.
A estética que envolve essa trajetória reforça a percepção de que Owen vive dentro de uma realidade deformada. As cores artificiais, a maquiagem exagerada dos monstros, a música que ecoa como se viesse de um porão distante, tudo sugere que o universo ao redor dele opera com a mesma lógica da série que tanto o marca. Não se trata de distinguir o real do imaginado, e sim de assumir que os dois compartilham a mesma densidade emocional. A direção permite que essa confusão seja fértil: os diálogos parecem sempre deslocados e certos personagens surgem como se tivessem sido retirados de um programa televisivo dos anos 90. A estranheza não é enfeite; é a matéria-prima que revela um personagem à beira de admitir quem realmente é.
O ponto mais inquietante da história se consolida quando Owen percebe que, ao tentar manter uma fachada de normalidade, sufoca precisamente aquilo que poderia libertá-lo. A festa de aniversário, construída como momento de ruptura, expõe a fragilidade dessa persona social. Ele circula pelo ambiente oferecendo desculpas automáticas, como se cada palavra funcionasse para manter viva uma versão desgastada de si mesmo. O contraste com o chamado simbólico de The Pink Opaque revela a profundidade do seu conflito: escolher entre um cotidiano que o embrutece ou a possibilidade de abraçar algo que finalmente faz sentido, por mais delirante que pareça.
A leitura política e afetiva dessa jornada é direta, mas nunca panfletária. As vivências de Owen dialogam com experiências de quem cresceu deslocado, seja por identidade de gênero, sexualidade, classe ou simplesmente por carregar uma sensibilidade que o entorno insiste em tratar como ameaça. A força do filme está em reconhecer que alguns adolescentes encontraram, em programas estranhos da TV dos anos 90, um vocabulário emocional mais acolhedor do que qualquer conselho adulto. Justice Smith e Brigette Lundy-Paine sustentam essa dimensão com interpretações que equilibram fragilidade e determinação, criando personagens que parecem sempre à beira de um esclarecimento doloroso.
O filme conclui deixando uma pergunta incômoda sobre o preço da adaptação social. Owen até possui uma espécie de poder interior, quase uma energia psíquica que ecoa sua versão televisiva, mas ele hesita em usá-la. Não por medo do desconhecido, e sim pelo temor constante de incomodar aqueles que esperam comportamentos previsíveis. O roteiro lida com essa angústia sem oferecer atalhos emocionais. Em vez disso, sugere que a recusa em ouvir o próprio impulso vital pode ser tão destrutiva quanto qualquer criatura encontrada na tela da televisão.
A vibração que fica depois é a de acompanhar alguém que se afasta do brilho que poderia guiá-lo. “Eu Vi o Brilho da TV“ funciona como aviso: a autenticidade tem um custo, e a renúncia a ela cobra juros altos. O que permanece é um rastro de melancolia e a sensação de que, em algum ponto do caminho, Owen quase encontrou uma saída. A pergunta que ecoa não busca reconciliação; quer apenas saber quantas pessoas, como ele, seguem caminhando com a televisão acesa por dentro.
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