A sequência de incidentes que inaugura “Sem Remorso“ deixa no ar uma sensação de que alguém decidiu acionar o modo automático da política externa: operações nebulosas, ameaças mal delimitadas e um rastro de decisões tomadas por figuras que jamais enfrentam o resultado concreto de suas próprias escolhas. John Kelly, interpretado por Michael B. Jordan, surge nesse tabuleiro como o típico agente que conhece de perto o custo humano dessas jogadas. Ele lidera uma equipe de Navy SEALs convocada para resgatar um suposto agente americano em Aleppo, apenas para descobrir que o sequestro tinha assinatura russa. O episódio, em vez de encerrar uma missão, inaugura um fio de consequências que avançará sem trégua até destruir a vida pessoal do personagem.
A partir desse ponto, o filme acompanha Kelly em um movimento de queda livre emocional, precipitado pelo ataque brutal que mata sua esposa grávida e o deixa à beira da morte. É o tipo de golpe que, na lógica de ação internacional, costuma ficar registrado em relatórios frios; aqui, porém, o impacto ganha corpo no olhar de Jordan, que interpreta a dor do personagem sem melodrama, apenas com aquele cansaço profundo de quem percebe que o sistema ao qual dedicou anos não hesita em triturar seus próprios soldados. O roteiro encadeia essa perda com a investigação conduzida por Karen Greer, interpretada por Jodie Turner-Smith, cuja presença reforça a tensão entre a disciplina das instituições e a urgência humana de buscar justiça.
A narrativa se adensa quando Kelly, ainda convalescente, exige participar da caçada aos responsáveis pelas mortes de seus companheiros e de sua família. Não há benevolência nesse pedido; trata-se de um impulso de sobrevivência. O filme o coloca em um território híbrido, no qual ele não sabe mais se está servindo ao país ou apenas à própria necessidade de entender quem fabricou toda a sequência de traições. A dinâmica com Robert Ritter, interpretado por Jamie Bell, adiciona uma camada de desconfiança: cada interação entre eles parece construída para testar até onde Kelly tolera as ambiguidades estratégicas que o cercam.
O diretor Stefano Sollima intensifica essa sensação de instabilidade ao criar cenas de ação que funcionam como estilhaços de informação: confrontos árduos, operações em território hostil e uma cena aérea que amplifica a desorientação moral dos envolvidos. Ainda assim, o filme não esconde que seu verdadeiro motor é sempre Kelly, dividido entre o dever militar que moldou sua identidade e o ressentimento que agora o move com uma lucidez perigosa. A estrutura global do enredo também sugere que as peças políticas por trás dos ataques dependem da fricção constante entre Estados Unidos e Rússia, usando soldados descartáveis como moeda de cálculo.
Mesmo quando a trama se encaminha para seu desfecho em solo russo, a lógica que impulsiona Kelly permanece inquieta. A revelação sobre as intenções por trás da operação não chega como surpresa, mas opera um deslocamento: deixa claro que, para alguns agentes de poder, o conflito não é uma falha do sistema, e sim sua engrenagem favorita. O filme encerra esse arco com Kelly assumindo uma função que o distancia do militar obediente de antes. Ele passa a agir com a consciência incômoda de que as instituições podem manipular ameaças para sustentar narrativas políticas, mas também com a percepção de que alguém precisa romper o ciclo ou, pelo menos, expor seus componentes.
O resultado é uma experiência que combina ação vigorosa com uma leitura amarga das estruturas que sustentam a violência estatal. Não é a promessa de redenção que permanece após os créditos, e sim a pergunta que o filme deixa pairando: quantos conflitos globais nascem justamente da conveniência de mantê-los acesos? A resposta talvez nunca seja plenamente satisfatória, mas acompanhar Kelly durante essa ruptura já é suficiente para perceber que as guerras mais duradouras são aquelas travadas longe dos campos de batalha visíveis.
★★★★★★★★★★


