A impressão inicial ao assistir “Era Uma Vez em…. Hollywood“ não nasce de uma nostalgia fácil, mas de uma sensação ligeiramente cúmplice: a de invadir um território onde Rick Dalton, vivido por Leonardo DiCaprio, encena a própria derrocada com a obstinação de quem tenta salvar o que resta de um sistema em mutação acelerada. Ele se observa no espelho com a precisão de um ator que conhece os próprios limites, mas que insiste em fingir que não os vê. Essa fratura íntima sustenta toda a narrativa, como se o cotidiano aparentemente banal de um artista em decadência fosse mais revelador do espírito de uma época do que qualquer reconstituição histórica grandiosa. E é nesse movimento que o filme conquista: na recusa em heroicizar o passado e na adesão irrestrita ao detalhe que expõe tensões invisíveis.
Cliff Booth, interpretado por Brad Pitt, funciona como espécie de satélite emocional desse universo. Ele circula por Los Angeles com a calma insolente de quem sabe que já perdeu quase tudo e, portanto, não precisa provar nada. Há uma liberdade quase filosófica no modo como conduz suas escolhas; liberdade que se contrapõe à rigidez de Rick, eternamente amarrado às expectativas da indústria. Quando Cliff estaciona na velha casa de estúdios onde grava dublês de segunda categoria, o filme desmonta a mitologia dos bastidores: não existe glamour, apenas sobrevivência. Ainda assim, Brad Pitt transforma cada gesto em algo enigmático, sugerindo um passado que o filme prefere manejar como fantasma, não como explicação.
A presença de Sharon Tate, interpretada por Margot Robbie, reorganiza silenciosamente a atmosfera da narrativa. Ela caminha pelas ruas com a leveza de quem desconhece a espiral de violência que cercava Los Angeles naquele período, mas essa inocência não é tratada como ingenuidade; é quase uma forma de resistência. Sua ida ao cinema para se ver na tela funciona como autorretrato involuntário de uma indústria que ainda acreditava na promessa de plenitude. Robbie transmite essa vibração com extrema delicadeza, como se cada sorriso fosse um lembrete de que a cultura pop carrega tanto sedução quanto fragilidade.
A trama avança entre pequenas rotinas que, vistas superficialmente, poderiam parecer dispersas. Mas a forma como essas rotinas se entrelaçam revela uma arquitetura precisa: Rick lutando para manter sua relevância enquanto grava cenas em que sua voz hesita; Cliff enfrentando os membros da comunidade liderada por Charles Manson com a mesma serenidade com que conserta uma antena; Sharon circulando por uma Hollywood que não imagina o quanto está prestes a se transformar. A reconstituição histórica não é tratada como vitrine; ela funciona como camada que dá densidade às relações, permitindo que o espectador perceba a transição subterrânea entre a era dourada e um futuro mais áspero.
Quando o filme aproxima os caminhos desses personagens da noite que redefiniu o destino de Sharon Tate, a narrativa não busca dramatização explícita. O que se instala é outra coisa: uma sensação de deslocamento entre o que conhecemos da história e o que a ficção ousa rearranjar. O confronto final, protagonizado por Rick e Cliff, não está ali para glorificar a violência, mas para reimaginar um desfecho menos brutal para um capítulo que marcou indelevelmente a memória cultural americana. É uma espécie de pergunta lançada ao ar: e se a tragédia pudesse ter sido evitada por personagens que jamais existiram? Essa liberdade criativa produz uma torção emocional poderosa, pois tensiona o imaginário coletivo sem trair a gravidade dos fatos.
A experiência do filme opera nessa ambiguidade constante: celebra o passado e, ao mesmo tempo, expõe suas fissuras; brinca com mitos, mas não se ajoelha diante deles; reescreve um ponto de inflexão histórico sem suavizá-lo. Ao final, permanece um incômodo produtivo, como se Los Angeles de 1969 fosse menos uma cidade e mais um organismo prestes a mudar de pele. Rick Dalton, Cliff Booth e Sharon Tate orbitam esse momento com trajetórias distintas, mas igualmente marcadas pelo choque entre fantasia e realidade. Talvez seja esse o verdadeiro legado de “Era Uma Vez em…. Hollywood“: lembrar que toda memória cultural é construída sobre escolhas, e que algumas escolhas, mesmo as imaginárias, iluminam o que a história deixou nas sombras.
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