Jack Nicholson é um dos astros de Hollywood cuja carreira apresentou mais períodos de normalidade, em produções que, de uma ou de outra maneira, revolucionaram essa coisa fascinante chamada cinema. Seja por sorte, método, carisma, a reputação que foi erigindo, tijolo por tijolo, junto aos realizadores mais poderosos da indústria ou um pouco de todos esses elementos, ele preserva sua aura de mito, essa palavra que se usa hoje para classificar qualquer debiloide pretensioso. Longe dos estúdios desde “Como Você Sabe” (2010), Nicholson apresenta uma das performances mais marcantes da prolífica carreira em outro filme de James L. Brooks. O Melvin Udall de “Melhor É Impossível” é um daqueles instantes mágicos ao longo dos 130 anos da história dos filmes, por sua capacidade de reunir tantos sentimentos numa só composição e, como se não quisesse nada, transcendê-la, mostrando com clareza que todos somos um pouco aquele homem atormentado que, a seu modo, implora por ajuda.
Há em Melvin Udall uma gota de Jack Torrance, o zelador diabólico do hotel Overlook de “O Iluminado” (1980), a obra-prima do terror de Stanley Kubrick (1928-1999), e Brooks tira todo o proveito que pode disso. Melvin é um escritor avesso a interações sociais, convivendo muito bem consigo mesmo e com o transtorno obsessivo-compulsivo que define quase tudo em sua rotina. Qualquer um se lembra ou já ouviu falar da cena em que esse homem cômodo em sua infelicidade volta para seu apartamento de tons sombrios e gasta um sabonete por vez para lavar as mãos, jogando-o fora imediatamente. Contudo, ninguém arrisca-se a delimitar até onde vai a psicopatia de Melvin, capaz de atirar no lixo Verdell, o griffon de Bruxelas de Simon Bishop, o vizinho artista plástico, gay e festeiro que elege como inimigo figadal, interpretado por Greg Kinnear. É o gancho para que Brooks e o corroteirista Mark Andrus incluam as piadas homofóbicas — e mais tarde as de cunho sexista, racista e capacitista, que, por óbvio, envelheceram mal. Se serve de consolo, Melvin paga a língua, mas só depois de cometer uma pletora de novas atrocidades.
Boa parte do que de mais convidativo há em “Melhor É Impossível” acontece no restaurante onde Melvin faz suas refeições. Nem é preciso dizer que sua arrogância e suas manias, como a de levar os próprios talheres, descartáveis, e achar que tem mesa cativa, fazem-no persona non grata, e a única garçonete que aceita atendê-lo é Carol Connelly, mãe solo de Spencer, um garoto com uma doença respiratória grave. Como todos os demais funcionários do estabelecimento, ela não gosta dele, mas seu profissionalismo é tamanho que ela engana bem; as coisas entre os dois só desandam no momento em que tece uma observação meio debochada sobre o menino, e este é o ponto por meio do qual o diretor refina a ideia da gradativa redenção de Melvin. Nicholson partilha os holofotes com Helen Hunt, e não foi por acaso que cada um levou para casa seu Oscar, de Melhor Ator e Melhor Atriz Coadjuvante. Na pele de Carol, Hunt impressiona ao sempre achar o tom perfeitamente adequado de tristeza, indignação e esperança, conduzindo a história para onde ela talvez não chegasse sozinha. Não satisfeito em ter cuidado de Verdell enquanto Simon recuperava-se do espancamento que sofrera durante um roubo,
Melvin põe na cabeça que deve providenciar assistência médica para Spencer.
Ainda que as soluções deus ex machina, bastante típicas de um arrasa-quarteirão orçado em cinquenta milhões de dólares, façam a conversão de Melvin parecer instantânea demais, a autoconfiança de Nicholson livra “Melhor É Impossível” de desastres. Caímos na sua lábia, talvez por causa daquele sorriso cintilante, que tanto pode derreter geleiras na lua como funcionar feito os olhos da serpente encantando o camundongo pouco antes do bote. Ele nunca perdeu uma boa oportunidade de virar o jogo, e aqui, seu gênio serve tanto para causar repulsa como para instigar e seduzir. Com ele, o impossível toma forma. Melhor para nós.
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