Mãe, não se esqueça de mim, pois eu nunca vou lhe esquecer

Mãe, não se esqueça de mim, pois eu nunca vou lhe esquecer

Sossegue, mãe. Não morrerei jovem como Franz Kafka. Acabei de ler “Carta ao Pai”. Sim, é um livro muito bom. Bem amargo, ao meu gosto. Sim, eu lhe empresto. Mãe, por favor, se beber, não dance. Não, obrigado. Estou servido. Você sabe que cerveja preta não me agrada, ainda mais, adocicada. Aliás, não quero parecer presunçoso, autoritário, trágico ou melodramático, mas, tanto tango assim ainda vai lhe trazer problemas, mãe. Não subestime a osteoporose. Na sua idade, ossos e mentiras não colam. Sim, também nunca me esqueço daquela noite memorável em Buenos Aires, quando fomos ao show de Astor Piazzolla. Sim, “Libertango” é a sua canção mais bonita. Só de ouvir dá vontade de chorar, você tem razão. Escuta, mãe, não fuja do assunto. Já cansei de pedir pra você evitar esses sapatos de salto alto. Use rasteirinhas. Elas não combinam com tango? Paciência, mãe. Sinto calafrios só de ver o seu corpo frágil dando piruetas até frear, subitamente, sobre a coxa do dançarino, num grande final. Bravo?! Sensualidade é o escambau, mãe!

Pra início de conversa, confesso que a amo, incondicionalmente, mesmo se você saquear a Casa da Moeda com aquele seu bando de senhorinhas da Melhor Idade que frequenta noitadas nos bingos. Sorte a nossa você as ter encontrado. Seria tétrico você a tricotar suéteres na sala de estar, na frente do Sérgio Chapelin. Já pensou? Acho que o Sérgio é imortal, mãe. Será que ele toma formol? Confesso que eu não me sinto inteiramente à vontade para conjugar o verbo amar na primeira pessoa do singular. Recalques plurais? Não sei o porquê disso, mãe. Não faço ideia se essa suposta trava emocional advém da criação confortável, porém, rígida, que você e o papai nos impingiram. Posso me vangloriar por nunca ter apanhado de você quando eu era menino, numa época em que pais surravam filhos e sanguessugas eram usadas como tratamento médico. Um escândalo, você tem razão.

A única vez de que me lembro, você me estapeou na cara. Nem pense em chorar, mãe. Foi merecido, na minha opinião. Eu a provoquei com vara curta, num dia ruim, enquanto você sovava massa de rosca. Ainda hoje, passados tantos anos, consigo sentir aquele impertinente saborzinho de farinha de trigo na minha boca. Não se culpe. Aliás, não se preocupe com nada mais nessa vida, mãe. Naquela época, eu não tinha a exata percepção dos fenômenos corporais. A transição das mulheres para a menopausa as deixa mais destemperadas do que nunca; e os adolescentes, os inoxidáveis donos da razão. Aludindo a Fernando Pessoa, eu não sabia que eu nada sabia.

É o segundo domingo de maio. A maior parte das famílias reúne-se nesse dia, põe comida na mesa e comemora o Dia das Mães. Rosas nas mãos. Faca entre os dentes. Fazer o quê? Tem dessas coisas. Família, você sabe, é um mal necessário, e elas são todas iguais. Eu gostaria de aproveitar o ensejo pra lhe fazer algumas recomendações que julgo importantíssimas pra sua saúde e pra minha paz de espírito, se é que eu ainda possua algum. Não sei se um dia me converto, mãe. Depende. Hóstias consagradas servidas com azeite, sal e orégano dariam um baita petisco. Ok. Mais uma das minhas heresias. Acenda uma vela. Reze por mim esta noite, mãe. Nunca se sabe. Como escreveu Millôr Fernandes, o cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde. Por falar nisso, está na hora dos seus comprimidos vermelhos com frisos amarelos. Não confunda com os azuis com listras brancas. Eu faria um acordo com Deus, se ele me aparecesse durante um sonho: juntar-me-ia ao seu rebanho de séquitos, se ele prometesse não a riscar do mapa nos próximos 30 anos. Até lá, se tudo correr bem, já terei morrido. Penso que ele não toparia. Mesmo armado com um montão de poesia, Carlos Drummond de Andrade, numa tentativa de armistício com o Altíssimo, movido por uma terrível crise de autoestima, testou esse artifício sem lograr êxito.

Sim, tenho feito checapes periódicos e minha saúde está supimpa. E não é de mim que estou a falar, mãe. Não desvie o foco. Preste atenção. A saída que encontrei frente às adversidades e à fragilidade da sua velhice avançada foi sugerir certas medidas preventivas que, rogo, você as cumpra à risca. Não, eu não quero mandar na sua vida, mas também, não concordo com a premissa de que todo velho é teimoso e ponto. Isso não está certo, mãe. Faz assim: continue decorando e declamando os poemas daquela falecida doceira da casa velha da ponte. Sua memória humilha-me, sabia? Corte o sal e o açúcar, mas, não perca nunca essa doçura no olhar, nem se esquive de preparar os pudins de leite condensado de que tanto gosto. Banhos diários de sol, pela manhã, no máximo até às dez, sem uso do filtro solar. Sim, é verdade, está comprovado que a água filtrada nos filtros de barro é mais pura. Pra dor nos quartos, extrato de arnica. Pede pra Maria untar bem a região e massagear onde as suas mãos não alcançam. Por falar nisso, você já pediu pra ela recolher os tapetes da casa? Aprendi uma excelente receita pra acabar com aquela praga de camundongos: queijo parmesão ralado misturado com cimento. É tiro e queda. Por falar nisso, mãe, ande devagar; caia em contradição, mas, puta-merda, não caia no chão. Por fim, pra terminar por hoje, lembre-se de tomar suas cápsulas para memória. Não se esqueça de nós, de quem nós fomos, de quem nós somos, isso não, mãe, nunca, por favor, enquanto estivermos vivos.