Com “Vai Malandra”, Anitta empodera tudo, menos o bom gosto

Com “Vai Malandra”, Anitta empodera tudo, menos o bom gosto

Novo hit da cantora, além de comprovar que o poço do mau gosto não tem fundo, nos faz lembrar, por outro lado, que até a valsa já foi motivo de celeuma, tempos atrás

E eis que veio a lume “Vai Malandra”, mais uma mui engenhosa canção de Anitta. Repare o leitor, antes de tudo, que a ausência de vírgula entre o verbo “ir” e o vocativo “Malandra”, foi mantida por este que vos escreve com o fito de preservar a distintiva licença poética da autora. Pois bem, a canção veio acompanhada de um clipe que, sem nenhuma dúvida, é um monumento à pudicícia.  Clipe este que chamou atenção de umas tantas gentes por dois detalhes principais: 1) as “imperfeições lunares” nos glúteos de Anitta e 2) o uso de um paramento pouco ortodoxo até para os padrões da liturgia funkeira (mas muito comum à profissão de eletricista): a fita isolante.

Além da presença de Anitta, o clipe tem no elenco Mc Zaac, aquele da beligerante canção “Bumbum granada”, entoada com o parceiro Jarry que, diga-se de passagem, imita a inflexão vocal de Chico Anysio, quando este interpretava a personagem Coronel Bezerra (procure, no YouTube,  e compare. Verás que não minto). Há também a presença de outro sujeito, que canta em inglês de gângster. Mas isso é periférico. Como também é periférico este parágrafo. Vamos ao que interessa.

Em 18 de fevereiro de 1961, o psicólogo Dante Moreira Leite (1927-1976) publicou um ensaio no “Suplemento Literário” do jornal “O Estado de São Paulo”, intitulado “Os românticos e a valsa”. Em suma, o que Moreira Leite procurou explorar no texto foi o tema das reações dos autores do romantismo brasileiro à prática da valsa, que grassava pelos nobres salões deste país em meados do século 19. Dois escritores são por ele evocados, José de Alencar (1829-1877) e Casimiro de Abreu (1839-1860), com ênfase para o segundo.

Inicialmente, o psicólogo acentua que há uma regra geral, ao longo da história, sobre a penetração de certas invenções no seio de determinada sociedade. As reações podem ser violentíssimas, num primeiro momento. Basta lembrarmo-nos dos trabalhadores luddistas ante os teares mecânicos, no condado de York, em 1812. Contudo, quando útil, “a invenção acaba por ser aceita, seja por ‘assimilação’, seja pela criação de novos padrões, coerentes com a novidade”. Mas essa regra geral, continua Moreira Leite, “apresenta coloridos ainda mais interessantes quando encontramos ‘invenções’ referentes ao corpo humano”. Uma dessas invenções foi a valsa, cujos “ritmos e intenções parecem-nos, atualmente, despidos de qualquer sentido lascivo”. Mas não foi sempre assim.

Prossegue o psicólogo, dizendo que, para compreendermos as reações dos nossos românticos à valsa, “devemos lembrar que os sexos estavam, na sociedade brasileira do século 19, separados por uma grande barreira física, e seus contatos eram regulados por um ritual muito mais rígido do que o nosso. A valsa, ao permitir que o casal se aproximasse fisicamente e se isolasse dos outros, representava uma situação quase única na época. Por isso, seus efeitos aparecem muito claramente na literatura romântica, em que a valsa passa a apresentar uma situação de perigo real ou potencial”.

Por exemplo, José de Alencar, no romance “Senhora”, escreveu: “as senhoras não gostam da valsa senão pelo prazer de sentirem-se arrebatadas pelo turbilhão”. Ficavam, assim, entregues à voluptuosidade, à tentação, ao requebro. Reação semelhante teve Casimiro de Abreu. No poema “A Valsa”, escreve ele, ao dirigir-se a uma moça que, “Na valsa/ Tão falsa”, “Na dança/ Que Cansa”: “Voavas/ Com as faces/ Em rosas/ Formosas/ De vivo/ Lascivo/Carmim”. Já em “O Baile” (citado por Moreira Leite, tal como “A Valsa”), o poeta expressa um cândido receio:

Sim, valsa, é doce a alegria,
Mas ai! que eu não veja um dia,
No meio de tantas galas,
Dos prazeres na vertigem,
A tua c’roa de virgem
Rolando no pó das salas!…

A “cr’oa de virgem” das moças que figuram no clipe de “Vai Malandra” já rolou no pó das salas há muito tempo. E falando em invenção, reza a lenda que Anitta é a inventora do “quadradinho”, um movimento das ancas que simula o desenho de um quadrilátero imaginário no ar. Algo bem mais voluptuoso do que a valsa, certo? No clipe, o “quadradinho” é executado em mais de uma ocasião. Em uma delas, Mc Zaac aparece tamborilando as nádegas da cantora. Imagine como reagiria o humilde e tuberculoso Casimiro se visse isso? Ou, sejamos mais radicais, imagine como o ministro da justiça do Império, o sisudo José de Alencar, reagiria a outra dessas invenções, símile ao “quadradinho”, que é a “sarrada”, aprovada e experimentada por ninguém menos que o impoluto ex-presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva? Casimiro certamente morreria de infarto antes que a tuberculose lhe tragasse o último suspiro.

Fato é que a valsa foi naturalizada, absorvida (e absolvida). E assim segue com tudo. O que era ameaçador tornou-se irrisório, inócuo, quase nostálgico. Moreira Leite chega a destacar o poema “Letra para uma valsa romântica”, de Manuel Bandeira (1886-1968), publicado em 1948, cujos versos finais dizem: “Mulher diferente/ Tão diferente/ Desumana Elisa”. De certa forma, esses versos ecoam em “Essa moça tá diferente”, de Chico Buarque, na qual a moça em questão (ultrapassando a coquete Elisa, de Bandeira) aparece “pra lá de pra frente” e “decidida a se supermodernizar”.

Supermodernizou-se em “Vai Malandra”, como uma empoderada Vênus do mau gosto.

A propósito, e se o velho Chico nos surpreender a todos e, muito breve, compuser uma “Ópera da Malandra”, para que Anitta interprete?

Seria muito discrepante? Divago.