Uma voz dentro da cabeça repetia: bate!  Então eu bati.

Uma voz dentro da cabeça repetia: bate! Então eu bati.

“Que polícia, que nada. Por mim, deixava esses caras se pegarem até um moer o outro na porrada. E mais: se eu fosse autoridade, se eu fosse político, mandava montar um ringue ao lado do estádio, tipo uma daquelas jaulas do Mad Max (você já assistiu ao filme ‘Mad Max’ né, chapa?), jogava os brigões lá dentro e deixava o pau torar. Só valeria parar de bater quando um deixasse o outro desfalecido no chão, se não morto, ao menos desacordado. Chamar o SAMU? Não. Puro desperdício de dinheiro público com gente que não presta, que não vale o que o deputado enterra. Convocar a polícia pra apartar os briguentos? Também não. Ninguém merece entrar no meio daquela saraivada de sopapos e ainda receber a pecha de truculento, abusado, exagerado, ao lidar com força bruta contra aqueles anti-sociais inconsequentes e… brutos. Requisitar o camburão do IML pra catar os corpos? Nem pensar. É queimar gasolina e formol em vão. Que os comparsas de bestialidade, os sobreviventes da ignorância, se encarreguem de fazer a nojenta assepsia da arena de hemácias. Se eu tivesse poder de decisão, se fosse juiz ou prefeito, se apitasse alguma coisa nessa pocilga, faria um convênio com aquela milícia especializada no extermínio de zumbis do crack e de moradores de rua pra dar sumiço nos corpos, pois, nesse quesito de sumir com presunto os caras são imbatíveis. Os urubus, se aceitassem o cardápio, também serão bem-vindos.”

Enquanto eu comia um suspeitíssimo espetinho de picanha na rampa que dá acesso ao estádio, eu ouvia o discurso inflamado e escatológico daquele sujeito, um barrigudo que trajava a mesma camisa do meu time. Falava mais que mulher ao discutir a relação. Parecia um mentecapto em surto, isso sim. Os esdrúxulos requintes de crueldade daquele teorema-manifesto não me afetaram ao ponto de tirar o apetite.

Então eu ouvia o desabafo, balançava a cabeça assertivamente, mastigava aqueles borrachosos cubinhos de carne (na melhor das hipóteses seriam coxão duro de um animal ainda não identificado), bicotava na latinha de cerveja, tentava acompanhar o raciocínio e as bundinhas de torcedoras que desciam a escadaria. Três a zero pro meu time do coração. Que chocolate!

Falando em chocolate, fiquei pensando o quanto a vida andava amarga nos últimos tempos. As pessoas andavam amargas nos últimos tempos, pois, embora poucos de nós nos déssemos conta, os riozinhos continuavam a lavar as pedras, os colibris a sugarem as flores, os cães a chuparem mangas, e eu a semear metáforas e algumas poucas discórdias. O ser humano não. O homem — que, em maior ou menor grau, é um desmancha prazeres nato — continuava dando as cartas no planeta, impondo o famosíssimo “ritmo de jogo” (se quisermos fazer uma analogia ao futebol).

Com o radinho de pilhas pregado na orelha, feito um fanático como outro qualquer (podia ser uma bíblia no sovaco, uma camisinha dentro da carteira, um maço de dólares na cueca… não; era um mero radinho de pilhas grudado no ouvido, como se o aparelho ditasse àquele sujeito dicas infalíveis de como ir tocando a vida em frente), o sujeito repetiu o que presidente do time mandante acabara de declarar à imprensa, instituição sempre ávida por declarações precipitadas e desmedidas: que nos próximos jogos do time naquele estádio, ele aumentaria substancialmente os preços dos ingressos, extinguiria as promoções, dificultaria a todo custo o acesso dos baderneiros àquela praça de esportes, os membros da ralé, os sujeitinhos pés-de-tódi, os protagonistas da pancadaria generalizada, da selvageria incrível que fazia qualquer cidadão do bem se sentir constrangido em ter nascido gente. O que não caía muito bem no discurso emotivo e improvisado do presidente — e repetido pelo gordinho invocado — era a suposição de que, em tese, aquela espécie de rinha de boçais, de MMA pirata, de octógono bestial da vida como ela é, era uma prerrogativa, um mau costume, um defeitinho dos pobres.

Pobre presidente do meu time… Abilolado, tenso, envergonhado com o espetáculo de pontapés e esganaduras proporcionado pelos membros de uma torcida organizada bastante desorganizada, o empolado dirigente cometia, ainda que em grau abrandado, outro tipo de violência, desta feita, de ordem social, ética, moral. Da mesma forma que o povão ali presente naquela tarde, aturdido com tamanha demonstração de brutalidade nas arquibancadas de concreto, o presidente pisava na bola ao supor que pobre fosse especialista em truculência.

Enquanto o fanático pançudo vomitava aquele solilóquio pós-jogo (eu nem ao menos perguntei o seu nome… quanta violência a minha…), fui montando na minha mente um mosaico, uma colcha de retalhos, uma quadrilha organizada de ideias — não sei se despertado pelo efeito viciante da cerveja gelada ou pela simples necessidade de continuar raciocinando, plugado à realidade — a fim de compreender como é que eu ainda me sujeitava a frequentar um ambiente tão hostil e bizarro quanto um estádio de futebol, um espaço público em que torcedores atiram copos de urina uns nos outros e ainda se abraçam para comemorarem gols. Não lhes parece uma estupidez, uma falta de higiene, ao menos?

A branda ebriedade conduzia meus pensamentos, até eu ser interrompido por um trio de torcedores do time visitante: “Tira a camisa, mané”, mandaram.

“Como assim: tira a camisa?”, fingi não entender, embora soubesse que levaria uma surra caso não entregasse logo ao trio o manto sagrado.

“Tira logo a camisa, seu otário!”, ameaçaram.

Encorajado pelo álcool que lavava os neurônios e pelo discurso prolixo do gordinho sofredor (meu chapa), eu estava prestes a enfiar o espetinho de picanha (ou seria granito?) dentro do olho cor-de-maconha do magrelo que parecia ser o líder da trupe, pois era o mais mandão. Não tive tempo para brutalizar, para fazer bobagem e justiça com as próprias mãos como se fora uma das personagens de Quentin Tarantino.

O trio desandou em correria ladeira abaixo. Desta feita, os imbecis fugiam de outro bando de imbecis, torcedores rivais, torcedores do meu time do coração, que gritavam armados com porretes: “Uh, vai morrer! Uh, vai morrer!”.

Não sei se o trio foi alcançado e se morreu ou não morreu. Nota-se que eu não morri, tanto assim que escrevo esta crônica. O gorducho incógnito, o guru do juízo final, o cavaleiro obeso do apocalipse, que há pouco galopava na verborragia, sumiu, escafedeu-se, vazou sem pagar a conta pro japonês da banca.

O japa cresceu pra cima de mim. Queria porque queria receber o consumo do amanteigado fujão. Por causa do bate-boca, juntou gente ao redor. Curiosidade mata. Então, pra variar, quase deu briga e morte. Coisas de homem, vocês sabem. Nesses casos, pobreza de espírito, sempre; falta de grana e de posição social, talvez.