Breve diário do desencanto 3

Breve diário do desencanto 3

Adoramos suspirar — quando vivemos em uma cidade grande, enorme, gigantesca, abissal — e falar sobre a impessoalidade de viver em um lugar assim, da solidão dos centros urbanos, de como somos anônimos e blá blá blá, mas não é verdade.

A verdade é que mesmo os lugares mais assustadores e cinzentos são feitos de pessoas. Tem sempre gente ali. Boa e ruim. Engraçada, sacal, babaca. Pessoas com coisas para ensinar e mostrar e dizer, ainda que não com palavras. E antes que isto descambe para autoajuda de quinta categoria, permita que eu me adiante e conte que, apesar de morar em São Paulo, não vivo, mesmo, em São Paulo. Vivo em um bairro. Com árvores e passarinhos; babás passeando criancinhas; crianças um pouco maiores indo a pé para o colégio; bravos esportistas matinais, suando a camiseta, com fones nas orelhas e óculos de homem-mosca; pracinhas; muros pichados; cães perdidos; poluição; venda de drogas; bêbados que fazem xixi na minha calçada, aos gritos, às três da madrugada (xixi, vá lá, mas os gritos são o quê, torcida organizada?); batidas policiais monstruosas, bem minha esquina; ônibus com gente pendurada e vizinhos. Bons, maus, chatos, fofos, ridículos, incompreensíveis vizinhos.

Portanto, naquela manhã, aquela manhã em que eu precisava tanto me apressar, tranquei o portão e me agitei rua acima, desviando do seu Manuel (viúvo, 57 anos, aposentado, com a mais absoluta certeza de que a vida acabou, ele se levanta antes das seis da manhã — para ficar mais tempo sem fazer nada — toma café e vem se sentar em um dos degraus da calçada, onde permanece conversando com um ou outro, olhando a rua e fumando até às 13h, horário do almoço e da soneca. Sério. Todos os dias.); desviando das crianças que urram carregando seus carrinhos de rolimã enquanto seguem na mesma direção que eu para despencar rumo ao nada em aceleração constante e temerária. Carrinhos de rolimã? Em São Paulo? Ah, sim. Vários.

E desviei do maior perigo que o indivíduo enfrenta em uma vizinhança, “qualquer vizinhança” onde vivam pessoas, “quaisquer pessoas”, não importando credo, raça, time de futebol ou modelo das cuecas: a rodinha de vizinhos.

Ricos e pobres amam fofoca. Feios e belos, felizes e infelizes, bons e maus. Fofocar é humano. Fofocar é preciso.

E quem está mais equipado para fofocar neste vasto mundo? Vizinhos. Os sujeitos que veem a hora em que você saiu e voltou, a roupa que usava, o volume do seu lixo, a frequência com que recebe a faxineira e o tempo que você e o cavalheiro do carro preto demoraram para se despedir.

A rodinha da qual me desviei naquela manhã em que, como lhe contei, eu precisava mesmo sair, não batia recordes olímpicos, mas tinha um tamanho respeitável. Cinco membros. Dentre eles, dona Lúcia, a abelha rainha da rua, líder espiritual e manicure de multidões que abominam salões de beleza e adoram um batom de catálogo (confesso pertencer a esta denominação). Misto de vendedora em domicílio, líder comunitária e madre superiora, dona Lúcia mora no bairro há 39 anos e nada lhe escapa. Ela soube que a Fabiana do 908 estava grávida antes mesmo de ela comprar o teste na farmácia. Ela soube que a prefeitura ia alargar a avenida antes que o sr. Prefeito assinasse a desapropriação do velho cinema, da padaria e do posto do seu Luís. Ela lidera a PM quando um bandido se aventura na região, com o testemunho dos helicópteros do Datena, e coordena pessoalmente os caras da Defesa Civil em caso de desabamento, incêndio ou fuga em massa de poodles.

Bem, a dona Lúcia me viu subindo a rua e me chamou.

— Leonor! Ei, Leonor! Vem aqui, quero contar uma coisa para você.

E eu, a Leonor (você não sabia, sabia? Eu me chamo Leonor), resisti. Bravamente. Resisti não porque tenho caráter ilibado, rígida moral e acho fofoca uma coisa nojenta. Resisti porque dona Lúcia preside as mais suculentas rodinhas de fofoca da zona sul de São Paulo e eu precisava “mesmo-mesmo-mesmo” sair.

Sim, eu sei que já disse isso.

Ilustração: El Triunfo de Baco ou Los Borrachos, 1623, Diego Velázquez)