Poucas vezes na história do cinema a pobreza, a vulnerabilidade social e os horrores que o dinheiro (ou, mais precisamente, a falta dele) impõe à vida de indivíduos e à própria estrutura de uma nação foram expostos com tanta perspicácia, virulência e domínio narrativo quanto em “Parasita”, um filme que rejeita estereótipos de modo tão desembaraçado quanto original para reinventar-se a cada lance. A uma leitura apressada, supõe-se que o sul-coreano Bong Joon-ho tinha na cabeça uma comédia de costumes temperada com um quê de suspense; todavia, não são necessários mais que quinze minutos para que se alcance a conclusão de que, feito na vida como ela é, aqui também tudo reveste-se de camadas mais e mais densas de reflexão prática, com uma grande história, de apurada linguagem visual em sua superfície. Raros diretores sabem como dizer essas verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como Bong, que, com todo o mérito, botou no currículo o Oscar de Melhor Filme por este trabalho, o primeiro longa em idioma estrangeiro a vencer na categoria, e o primeiro a ganhar a estatueta da Academia junto com a Palma de Ouro de Cannes — façanha que levou 65 anos para se repetir, depois de “Marty” (1955), de Delbert Mann (1920-2007) —, além, claro, da premiação como Melhor Filme Internacional, mais óbvia.
Nos últimos vinte anos, a Coreia do Sul virou uma das indústrias cinematográficas mais pujantes do mundo ao revelar Park Chan-wook, Lee Chang-dong e Hong Sang-soo, cineastas hábeis em mesclar gêneros e urdir tramas que exploram o colapso da arcaicíssima estrutura sobre a qual assenta-se a economia de mercado e os costumes e tradições que justificam-na. Nesse mesmo terreno fértil nasce a obra de Bong, um arguto observador da sociedade sul-coreana, que valendo-se de humor cáustico, domínio da técnica e uma dose necessária de cinismo alcança públicos os mais heterogêneos ao redor do globo. Desde “Memórias de um Assassino” (2003), passando pelo inegável sucesso de “O Hospedeiro” (2006), Bong já punha em evidência o dom de transformar suas percepções em alegorias incomodamente necessárias. O comentário sociopolítico em sua filmografia ganha impulso adicional em “Expresso do Amanhã” (2013) e “Okja” (2017), um prelúdio do que o diretor e o corroteirista Han Jin-won levariam à tela na sequência.
A família de miseráveis comandada por Kim Ki-woo dobra caixas de pizza para uma empresa de entregas e usa o wi-fi de uma cafeteria da vizinhança, não para economizar, mas porque não encontra um meio de subsistência que permite-lhes vislumbrar o ingresso na tal sociedade do consumo, o verdadeiro passaporte para a vida plena com que tantos sonham. Uma virada começa a se desenhar no horizonte quando um amigo o indica como professor de inglês para uma garota por quem está apaixonado; a partir de então, deslinda-se um dos mistérios que cerca desse clã de desgraçados, babando diante da possibilidade de, literalmente, sair do buraco. Choi Woo-sik deita e rola numa performance inquietante, que dilata o alcance simbólico do enredo. O filme move-se de uma engenhosa farsa sobre vigaristas para um neonoir sustentado por uma pergunta nada fácil de ser respondida: quem explora quem? Entre uma elite sem pejo de explorar seus subalternos e pobres-diabos que sobrevivem recorrendo a métodos pouco edificantes, Bong Joon-ho desvia, sagaz, do maniqueísmo. Como no melhor da arte cinematográfica sul-coreana deste século, a verdade oculta-se em labirintos subterrâneos.
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