Nascida como ferramenta de responsabilização para celebridades e figuras de poder, a cultura do cancelamento acabou tornando-se um mecanismo frágil, porque baseada em informações sem contexto e simpática a arroubos. Criou-se um ambiente de tal sorte irracional que as opiniões parecem sujeitas a um paradigma, e quem não se enquadra é logo mandado às cortes inquisitoriais que investigam e julgam e condenam, sem se comover com detalhes a exemplo de direito ao contraditório ou à ampla defesa. A rápida ascensão do politicamente correto como método de avaliação intelectual segue a causar inestimáveis prejuízos à formação cognitiva de uma vasta parcela dos oito bilhões de almas a habitar a Terra, chegando com estrépito à imprensa e à academia, um dos pontos centrais em “Depois da Caçada”. Em seu novo trabalho, Luca Guadagnino cruza a atmosfera pantanosa que empesteia uma renomada universidade americana e atinge em cheio um professor, com tal violência que leva junto uma sua colega bastante próxima. E então uma miríade de fatos novos vem à superfície.
Em Yale, todos conhecem Alma Imhoff. Ela acorda todos os dias às quinze para as sete, prepara um café da manhã frugal e vai dar sua aula, sonhando com o dia em que apresentará a tese que pode lhe garantir uma vaga como professora titular da cátedra de filosofia. Alma e o marido psiquiatra, Frederik, são conhecidos pelos convescotes refinados que oferecem em casa, quando amigos e alunos passam a noite discutindo Hegel, Wittgenstein, Foucault e Locke, até que a luz baça de uma manhã de inverno diga que é hora de encerrar a festa. Depois de uma dessas reuniões, o professor Hank e Maggie, uma estudante da turma de doutorado, saem do apartamento de alma e Frederik juntos, e no dia seguinte ela é procurada pela moça. Maggie, uma mulher lésbica que namora um homem transgênero não-binário, acusa Hank de tê-la violentado, contando com Alma para levar o caso à reitoria. Mas nada é exatamente o que parece.
O roteiro de Nora Garrett dá algumas pistas sobre o que de verdadeiro, misterioso e falso existe nesses três personagens, ao passo que também vai preparando descobertas que eles fazem uns sobre os outros. Uma cena num casebre afastado que Alma mantém como uma espécie de retiro espiritual opõe a protagonista a Hank, e fica claro que talvez Maggie tenha dito a verdade — ainda que ela não seja nenhuma santa. Julia Roberts oscila entre gradações de drama que escalam depressa, mormente depois de completo esse arco, enquanto Andrew Garfield é hábil em mover-se da autopiedade à fúria, sem nunca liquidar o assunto da pretensa culpa de Hank, apenas sugerindo. Ayo Edebiri é ainda mais furtiva, e a conversa meio fantasiosa de Maggie e Alma num restaurante indiano, quase o despertar de um longo pesadelo, suscita dúvidas quanto à sanidade psiquiátrica das duas. Pouco antes, um segredo revelado por Alma a Frederik, com Michael Stuhlbarg em aparições bissextas, mas sempre estimulantes, interdita qualquer conclusão definitiva acerca da índole da professora. Coisas com que o binarismo da geração Z não lida bem.
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