Inspirada em Ibsen, nova produção no Prime Video transforma um clássico em um incêndio emocional contemporâneo Divulgação / Orion Pictures

Inspirada em Ibsen, nova produção no Prime Video transforma um clássico em um incêndio emocional contemporâneo

Mulheres que não se encaixam nos papéis que a sociedade lhes designa têm duas alternativas: conformar-se ou ir à luta pelo que desejam. Essa é a realidade hoje e, claro, era ainda mais palpável em 11 de dezembro de 1890, quando Henrik Ibsen (1828-1906) publicou “Hedda Gabler”, encenada cinquenta dias mais tarde no palco do Residenztheater, em Munique, na Alemanha. Considerado o pai do drama moderno, Ibsen notava mudanças sutis tomando forma no meio que o cercava, e sua obra mira com argúcia as tensões sociais sob o ângulo das relações íntimas, o que Nia DaCosta tenta fazer no confuso “Hedda”. A releitura do texto do norueguês levada à tela pela diretora faz inegáveis acenos ao politicamente correto quando transforma a protagonista numa mestiça rejeitada pelo pai que espalha destruição aonde quer que vá, mas esta é só a miúda centelha que dá origem ao incêndio.

Hedda volta da lua de mel com George Tesman para a imensa herdade na qual só poderão ficar se George for efetivado como professor na universidade onde leciona. Este é o motivo para a festa que se estende pelos 107 minutos, e toda a ação se passa entre os cômodos da propriedade, um acerto da cenografia de Cara Brower, que faz a casa emular o labirinto mental da personagem-título e, como se vai assistir, também de seus convidados. O casal recebe o professor Greenwood e sua jovem esposa, Tabitha, a quem dispensa atenção especial, nunca perdendo de vista a hipótese da urgente promoção de George, o salão vai se enchendo, e o convescote parece que será um sucesso. Entretanto, Eileen Lövborg, uma ex-amante de Hedda, chega para cobrar algumas satisfações sobre o passado das duas, e a anfitriã vê-se obrigada a usar de seu charme para vencê-la. Mas Eileen está diferente.

A diretora-roteirista subverte a mecânica ibseniana dos conflitos que levantam-se uns sobre os outros, distribuindo o enredo em cinco capítulos, a maior parte deles ancorados na figura ambígua de Hedda, por óbvio. A aparição de Eileen, contudo, mexe com o andamento da narrativa, injetando um providencial dinamismo na segunda metade. Na peça, Eileen é Eilert, e a mudança de gênero não seria problema caso o filme fosse além da vontade de chocar a burguesia. A interpretação de Tessa Thompson é sempre melhor ao lado de Nina Hoss, que confere a Eileen um ar de alguém numa tortura permanente, num lamento de autopiedade que lhe dá certo alívio. Hedda, a mulher fatal que parece ter ido para a cama com todos os seus comensais, segue destilando seu charme com o propósito de ter a posse de um trabalho acadêmico manuscrito por Eileen, momento mal-executado cujas deficiências a trilha sonora de Hildur Guðnadóttir empenha-se por suavizar. Sem muita surpresa, os personagens masculinos derivam, a reboque dos caprichos de Hedda e Eileen, mas o juiz Roland Brack de Nicholas Pinnock cava uma boa cena no último segmento. As invencionices de “Hedda” não seriam um problema tão considerável, desde que DaCosta contasse o que Ibsen escreveu. Só isso.

Filme: Hedda
Diretor: Nia DaCosta
Ano: 2025
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.