Gene Hackman e Matt Damon no faroeste que virou referência para Tarantino. Hoje na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Gene Hackman e Matt Damon no faroeste que virou referência para Tarantino. Hoje na Netflix

Ambientado nos últimos anos das Guerras Apaches, “Gerônimo: Uma Lenda Americana” acompanha o processo que leva o líder indígena à rendição após sucessivas tentativas de confinamento em reservas. O roteiro segue a tensão entre um Exército que precisa pacificar a região do sudoeste dos Estados Unidos e um grupo de apaches que não aceita abandonar o próprio território e modo de vida. A história é vista principalmente pelos olhos do segundo-tenente Britton Davis, vivido por Matt Damon, que chega como novato à fronteira e observa as operações contra Gerônimo, interpretado por Wes Studi. Dirigido por Walter Hill, o filme traz ainda Jason Patric como o primeiro-tenente Charles B. Gatewood, Gene Hackman como o general George Crook e Robert Duvall como o chefe de batedores Al Sieber, e toma como referência relatos históricos e as memórias do verdadeiro Davis, autor do livro “The Truth About Geronimo”, de 1929.

O enredo se organiza em torno de uma campanha militar longa e exaustiva, em que o Exército tenta primeiro conter os apaches nas reservas e depois caçá-los pelas montanhas e desertos. A narração em primeira pessoa de Davis, em off, guia o espectador pela rotina dos destacamentos, pelos deslocamentos sucessivos e pelos bastidores das negociações. Esse ponto de vista aproxima a narrativa dos oficiais e batedores, mas deixa claro que a política de remoção já nasce marcada por promessas frágeis, incursões de colonos sobre terras indígenas e conflitos internos entre comandantes. O filme se coloca na tradição do western de fronteira, mas afasta a ideia de duelo individual e foca em uma guerra de desgaste, feita de patrulhas, vigílias e acordos quebrados.

Wes Studi faz de Gerônimo um líder que não se limita ao estereótipo do guerreiro indomável. O personagem aparece em momentos de planejamento, de desconfiança e de cálculo político, sempre atento ao que cada tratado oferece e retira de seu povo. O ator constrói um homem que hesita em aceitar a reserva, testa a palavra dos brancos e reage quando percebe que os compromissos não serão cumpridos. A economia de falas, os silêncios e a postura corporal indicam um chefe acostumado a ler o terreno e a medir o alcance de cada gesto. Ao redor dele, outros apaches ganham destaque pontual, com ênfase nos batedores que trabalham para o Exército e precisam lidar com a própria consciência diante das ordens recebidas.

Entre os oficiais brancos, Jason Patric assume o papel de mediador. Gatewood conhece o território, fala a língua local e tenta manter alguma coerência entre o que promete e o que testemunha no campo. Gene Hackman compõe um Crook cansado, ciente do drama em curso, pressionado por Washington e pelos resultados exigidos. Robert Duvall, como Al Sieber, representa a experiência prática dos batedores veteranos, que entendem a capacidade de luta dos apaches e sabem que cada incursão pelo deserto tem custo alto em homens e recursos. Matt Damon, mais jovem, traduz o olhar de quem ainda acredita em um ideal de honra militar e passa a questionar esse ideal à medida que vê a distância entre relatórios oficiais e o que acontece na linha de frente.

Walter Hill filma a fronteira como espaço aberto, mas controlado por ordens que chegam de muito longe. A fotografia enfatiza planícies áridas, cânions e horizontes dilatados, quase sempre cruzados por pequenas colunas de cavalaria que parecem diminutas em relação ao cenário. O uso de lentes longas e filtros em tons terrosos cria a impressão de um registro envelhecido, como se o público assistisse a acontecimentos de um século atrás preservados em película desbotada. A paisagem não surge apenas como pano de fundo, e sim como fator estratégico: é ela que esconde as movimentações de Gerônimo, cansa as tropas e define o ritmo da perseguição.

Nas sequências de patrulha e confronto, Hill privilegia clareza espacial. A câmera acompanha deslocamentos de pelotões, emboscadas em encostas e retiradas rápidas dos apaches sem confundir direções. A montagem se mantém relativamente sóbria, permitindo que o espectador entenda quem está cercando quem, o grau de risco de cada manobra e o desgaste progressivo dos soldados. Quando a narrativa se volta para reuniões entre oficiais e emissários indígenas, o ritmo desacelera e a tensão se desloca para a mesa de discussão, em que cada palavra pode indicar um recuo ou uma nova ofensiva.

A trilha de Ry Cooder reforça o clima melancólico desse faroeste tardio. Em vez de temas grandiosos, predominam motivos discretos, baseados em cordas e toques que se mesclam aos ruídos de botas, esporas, marchas e tiros. Em vários trechos, o silêncio ganha espaço, deixando que o som do vento, dos cascos e das vozes cansadas marque a passagem do tempo. Esse desenho sonoro ajuda a transmitir a sensação de campanha prolongada, em que homens e cavalos parecem prestes a desabar, e em que qualquer nova ordem gera mais exaustão do que entusiasmo.

O retrato histórico adotado pelo filme não ignora massacres, expulsões e violações de tratados, mas procura mostrar que a máquina militar também abriga discordâncias internas. Generais e tenentes discutem a justiça das decisões, avaliam se vale a pena manter promessas e medem o efeito político de cada gesto sobre a opinião pública. Ao mesmo tempo, os apaches são mostrados como guerreiros experientes, capazes de operar ataques eficientes e de negociar com firmeza quando convém. Não há tentativa de transformar nenhum grupo em figura santificada, e sim de registrar um conflito em que os lados se conhecem bem e sabem o que está em jogo.

Essa busca de equilíbrio traz ganhos e limitações. A presença de indígenas em papéis relevantes, liderados por Studi, afasta parte dos clichês mais grosseiros do western clássico. Porém, a escolha de centrar a narração em Davis mantém o foco narrativo preso à experiência do Exército, o que restringe a intimidade com a aldeia apache e com a vida cotidiana fora do campo de batalha. Alguns personagens indígenas secundários permanecem reduzidos a funções dramáticas específicas, sem espaço para trajetórias pessoais mais complexas.

Do ponto de vista dramático, a decisão de cobrir um arco temporal amplo, com vários personagens e deslocamentos, leva a momentos de irregularidade. Em certas passagens, a narração em off substitui ações em cena e resume etapas da campanha de forma didática, enquanto em outras o filme se detém em debates internos de grande densidade, que dão dimensão humana à hierarquia militar. O equilíbrio entre esses registros nem sempre é estável, mas permite que o público acompanhe tanto o avanço das tropas quanto a mudança de percepção de figuras como Davis e Gatewood.

Lançado em 1993, “Gerônimo: Uma Lenda Americana” teve desempenho modesto nas bilheterias, mas recebeu indicação ao Oscar de melhor som e passou a ser visto como um dos esforços mais sérios de Walter Hill ao lidar com o faroeste histórico. A produção ocupa hoje um lugar intermediário entre a reescrita crítica do gênero, empenhada em revisar o olhar sobre povos indígenas, e o western clássico centrado no Exército, e ganha interesse justamente por expor essa tensão. O filme permanece como registro de uma fronteira já em declínio, em que a vitória militar vem acompanhada de cansaço, remorso e uma paisagem marcada por promessas que não voltam atrás.

Filme: Gerônimo: Uma Lenda Americana
Diretor: Walter Hill
Ano: 1993
Gênero: Drama/História/Western
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★