Denzel Washington, Rami Malek e Jared Leto no maior suspense policial da década. Agora na Netflix Divulgação / Warner Bros.

Denzel Washington, Rami Malek e Jared Leto no maior suspense policial da década. Agora na Netflix

Em “Os Pequenos Vestígios”, o ex-detetive Joe “Deke” Deacon, interpretado por Denzel Washington, retorna ao condado de Los Angeles para cumprir uma tarefa burocrática aparentemente simples e reencontra uma polícia abalada por assassinatos de mulheres sem solução. Um novo crime com sinais de repetição desperta a suspeita de um serial killer em atividade, e o atual detetive da divisão de homicídios, Jim Baxter, vivido por Rami Malek, decide convocar Deacon para observar detalhes que a equipe mais jovem não enxerga. A presença do veterano reacende tensões antigas no departamento, mas também oferece a Baxter uma chance de cruzar pistas que a pressão cotidiana tende a apagar.

A partir desse encontro entre gerações, o caso passa a girar em torno de um suspeito específico, Albert Sparma, interpretado por Jared Leto, morador de um bairro afastado que demonstra interesse excessivo por notícias de crimes. A polícia precisa rastrear a rotina desse homem, cruzar horários, percursos e relatos de testemunhas, enquanto chefes exigem resultados e a imprensa se aproxima do caso. A investigação assume a forma de uma corrida silenciosa contra o tempo, em que erros anteriores do departamento pesam tanto quanto as pistas mais recentes e criam um clima de desconfiança interna.

O filme acompanha Deacon pelas estradas noturnas do condado, por quartos de motel tomados por recortes de jornais e por arquivos onde fotos antigas ainda ocupam gavetas esquecidas. Washington constrói o personagem como alguém que já pagou um preço alto por uma investigação mal resolvida e agora hesita diante de cada hipótese nova. O olhar cansado, o jeito de circular pelos corredores evitando contato prolongado com colegas mais jovens e a postura rígida em cenas de autópsia sugerem um profissional que insiste em permanecer em campo mesmo quando a instituição prefere tratá-lo como figura do passado.

Jim Baxter representa a versão atual do detetive que acredita nos protocolos atualizados e na imagem de eficiência. Em público, o policial mantém postura controlada, fala com segurança em reuniões de equipe e busca preservar distância emocional dos corpos e das famílias das vítimas. Em momentos mais íntimos, o filme revela o peso que o caso passa a exercer sobre sua vida doméstica, com noites interrompidas e tentativas frustradas de manter uma rotina familiar. À medida que Deacon se torna uma referência silenciosa, Baxter começa a adotar formas de trabalho que ele próprio criticaria em outros contextos, o que desloca o suspense para dentro da dupla.

Albert Sparma entra em cena como ponto de convergência dessa tensão. Leto interpreta um homem que parece conhecer cada detalhe divulgado sobre os crimes e que gosta de provocar a polícia em conversas ambíguas. O filme acompanha a forma como ele responde a perguntas, como observa os detetives e como conduz pequenos gestos de desafio, seja ao aparecer em locais frequentados pela investigação, seja ao sugerir conhecimento que talvez não tenha. A dúvida sobre sua culpa alimenta o suspense, mas o que sustenta a narrativa é o efeito dessa dúvida sobre Deacon e Baxter, que passam a dedicar horas a rastrear rotinas sem conseguir produzir provas consistentes.

John Lee Hancock escolhe um ritmo que favorece a acumulação de detalhes em vez de explosões pontuais de ação. A câmera segue viaturas que patrulham avenidas quase vazias, registra longas esperas em carros estacionados diante de prédios comuns e insiste em corredores de delegacia onde quadros de avisos exibem fotos e mapas preenchidos à mão. A montagem dispõe o fluxo de pistas de modo a permitir que o público acompanhe o caminho de cada indício, mesmo quando ele leva a becos sem saída. Esse cuidado com deslocamentos e horários reforça o clima de um thriller centrado em informação e contrainformação.

Los Angeles aparece como cenário pouco glamouroso, composto por estacionamentos iluminados por lâmpadas frias, terrenos baldios próximos a rodovias e apartamentos apertados. A fotografia aposta em sombras densas e luzes oblíquas que reduzem a nitidez dos ambientes, mantendo sempre alguma área fora de alcance. Sons de trânsito distante, sirenes isoladas e passos em escadas estreitas constroem uma sensação constante de vigilância. O filme evita sustos fáceis e prefere a tensão de quem acompanha uma equipe que observa mais do que age, sempre à espera de um movimento do suspeito que confirme suspeitas ou derrube convicções.

O roteiro insiste na fragilidade das evidências. Objetos encontrados em diferentes cenas não formam uma cadeia indiscutível, depoimentos apresentam discrepâncias e análises laboratoriais apenas reduzem o campo de possibilidades sem fechá-lo. Deacon insiste em revisitar locais, fotografias e relatórios antigos, enquanto Baxter tenta conciliar essa insistência com a exigência de apresentar resultados em reuniões com superiores. O suspense nasce justamente do ponto em que a pressão por uma solução se aproxima do limite do que a prova pode sustentar. Quando os detetives avançam sobre Sparma sem autorização formal clara, o filme expõe um tipo de risco que não depende apenas das ações de um criminoso.

As interpretações dos três protagonistas reforçam esse desenho de desgaste gradual. Washington incorpora o peso de quem já viu a carreira e a vida familiar ruírem em decorrência de um caso que jamais saiu da sua cabeça, e cada gesto de cuidado exagerado com a nova investigação indica tentativa de evitar repetição de erros. Malek deixa entrever, nas mudanças de tom de voz e na rigidez de postura, a transição de um detetive confiante em seu percurso para alguém que começa a desconfiar da própria capacidade de julgar. Leto concentra a atenção nos momentos em que Sparma parece dirigir a cena, levando os policiais a segui-lo por percursos planejados para ampliar o desconforto.

Quando a investigação entra em fase de vigilância extraoficial, sem a presença clara de testemunhas ou câmeras, o filme intensifica a sensação de isolamento. Viaturas se deslocam para áreas afastadas, o rádio permanece em silêncio por longos intervalos e as ações passam a depender de decisões tomadas no interior de um carro, sem consulta a superiores. Cada deslocamento para terrenos ermos reforça a ideia de que, a partir desse ponto, o risco maior recai sobre os próprios policiais. O suspense deixa de estar apenas num possível ataque futuro e passa a incluir a chance de uma escolha irreversível cometida em nome da suposta proteção de vítimas que talvez jamais apareçam.

O desfecho não oferece resposta definitiva sobre a autoria de todos os crimes, mas define o estado em que Deacon e Baxter permanecem depois do último deslocamento. Um gesto enviado pelo veterano ao colega funciona menos como confirmação de certeza e mais como tentativa de aliviar uma consciência que já carregava peso anterior. A forma como Baxter retorna à sua casa, agora marcado por uma noite que rompeu qualquer sensação de controle, indica o tipo de dano que o filme considera central.

Ao encerrar esse percurso, “Os Pequenos Vestígios” se apresenta como suspense policial interessado em acompanhar o custo acumulado de decisões tomadas sob pressão, em uma polícia que tenta preservar a própria imagem enquanto convive com dossiês mal fechados. A permanência das fotos em murais, dos objetos guardados em sacos numerados e das estradas que continuam a ser percorridas sem certeza de destino reforça a sensação de que, naquele condado, a dúvida passa a fazer parte do trabalho tanto quanto a arma e o distintivo.

Filme: Os Pequenos Vestígios
Diretor: John Lee Hancock
Ano: 2021
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★