A sensação inicial ao assistir a “Harry Up Tomorrow” é a de acompanhar um experimento cuja lógica se revela apenas por fragmentos, como se Abel Tesfaye tivesse decidido transformar inquietações pessoais em uma jornada que alterna delírio e tentativa de autocontrole. O ponto de partida parece simples: Abel, interpretado pelo próprio Tesfaye, circula entre palcos, quartos de hotel e corredores mal iluminados enquanto tenta entender por que sua voz falha e por que sua imagem pública começa a se confundir com impulsos que ele não consegue mais dominar. Mas a narrativa rapidamente abandona qualquer ideia de linearidade para apostar em percepções truncadas, encontros que parecem deslocados e uma sucessão de imagens que tensionam a fronteira entre o que é lembrança, fantasia ou mecanismo de defesa.
Essa estrutura, por mais desconcertante que seja, encontra um eixo no trio que sustenta o filme. Barry Keoghan interpreta um amigo de longa data que também atua como gerente, alguém cuja presença mistura lealdade e cobrança, funcionando como espécie de consciência incômoda que exige de Abel mais do que ele está disposto a oferecer. Jenna Ortega entra em cena como uma figura que Abel conhece durante um show e cuja presença provoca imediata estranheza, não apenas pela intensidade, mas pela maneira como ela atravessa ambientes, conversas e conflitos sem que nada nela pareça inteiramente situado no mundo concreto. A narrativa não esconde essa ambiguidade; ela depende dela para conduzir o espectador a uma leitura mais simbólica do que factual.
Ao longo do filme, a relação de Abel com Jenna torna-se progressivamente opaca. Ela conduz diálogos que soam desconectados, aparece em momentos nos quais ninguém parece notá-la, e estabelece uma espécie de espelho invertido do protagonista. Quando a história enfim encaminha sua revelação, fica claro que Jenna funciona como um desdobramento psíquico de Abel, encarnando comportamentos que ele tenta afastar sem conseguir nomear. As cenas em que Ortega contracena com Tesfaye ganham força justamente porque não dependem de explicações diretas; o impacto vem da percepção gradual de que a personagem sintetiza traços que ele gostaria de enterrar. Essa construção ganha um reforço na abertura, quando uma figura semelhante a Jenna destrói simbolicamente a casa da infância de Abel, sugerindo que o rompimento com o passado exige um preço emocional que ele não está preparado para reconhecer.
A presença de Barry Keoghan amplia esse conflito. Seu personagem serve como lembrança constante das pessoas que acompanharam Abel antes da fama e de expectativas que se tornaram fardos. Embora menos explícito que o arco de Jenna, ele também funciona como manifestação de pressões acumuladas, representando o lado festivo e descontrolado da vida pública, aquele que alimenta excessos e produz esgotamento. Quando Keoghan e Ortega surgem nas sequências oníricas, fica evidente que a narrativa opera como um esforço de reorganização mental: o protagonista tenta separar o que pertence à sua identidade adulta e o que ainda está impregnado de culpa, medo e dependência emocional.
Mesmo com esse potencial interpretativo, “Harry Up Tomorrow” se sustenta mais pela construção de atmosfera do que por desenvolvimento narrativo. A câmera percorre rostos, corpos, palcos e corredores como se buscasse pistas de um enigma que o próprio filme não se compromete a solucionar. Há planos belos, especialmente nas sequências de sonho, mas a insistência em transformar cada momento em metáfora dilui a clareza necessária para que o espectador compreenda de imediato o propósito dessas visões. O resultado é uma experiência que passa a impressão de estar sempre prestes a revelar algo decisivo, mas que recua no instante em que esse esclarecimento se aproxima.
A atuação de Abel Tesfaye acompanha essa ambivalência. Ele consegue transmitir cansaço, frustração e certa incapacidade de lidar com o próprio sucesso, mas ainda demonstra limitações quando precisa modular variações mais sutis. Em contrapartida, Jenna Ortega sustenta as cenas de maior tensão psicológica, e Barry Keoghan confere densidade ao personagem que poderia facilmente cair na caricatura. Essa combinação faz com que certas passagens alcancem impacto emocional significativo, especialmente quando o filme sugere que os conflitos externos são apenas manifestações de pressões que o protagonista carrega internamente.
As poucas explicações que a narrativa oferece aparecem tarde, e o entendimento de que parte do elenco funciona mais como projeção do que como presença concreta exige atenção constante. O filme parece consciente dessa escolha estética, apostando em silêncios prolongados, mudanças abruptas de cenário e diálogos que parecem se desfazer antes mesmo de ganhar sentido. Essa opção pode frustrar quem espera linearidade, mas também provoca uma análise mais detida sobre o que o protagonista tenta expulsar de si para recuperar alguma forma de estabilidade.
No desfecho, a tentativa de Abel de se libertar dessas figuras psíquicas conduz ao ponto de maior intensidade dramática, quando ele precisa decidir que tipo de artista e que tipo de pessoa pretende ser. Não existe promessa de redenção plena. O filme se encerra no momento em que o personagem percebe que eliminar suas angústias não significa destrui-las, mas entendê-las o suficiente para que deixem de paralisá-lo. Esse gesto, mesmo que não transforme a história em algo mais consistente, oferece uma compreensão mais clara daquilo que o filme parece buscar desde o início: a dificuldade de conciliar exposição pública e fragilidade pessoal sem criar fantasmas que cobram seu preço.
★★★★★★★★★★

