Adaptado de best-seller nº 1 do New York Times, filme com Tom Hanks é uma joia subestimada na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Adaptado de best-seller nº 1 do New York Times, filme com Tom Hanks é uma joia subestimada na Netflix

Em “O Pior Vizinho do Mundo”, Otto Anderson é um viúvo que circula pelo condomínio com a mesma disciplina com que fiscaliza o próprio desânimo. Aposentado, sem filhos e preso a uma rotina de inspeções diárias, ele observa se portões estão trancados, lixeiras recolhidas e vagas de estacionamento respeitadas. O conflito nasce quando uma nova família se muda para a casa da frente e, com pequenos erros de manobra e muita espontaneidade, rompe a ordem que Otto julga ser o último ponto firme de sua vida. A partir dessas reuniões forçadas, o enredo acompanha o embate entre um homem que tenta controlar tudo e um grupo de vizinhos que insiste em tratá-lo como parte da comunidade.

Dirigido por Marc Forster, “O Pior Vizinho do Mundo” traz Tom Hanks como Otto, Mariana Treviño como Marisol e Rachel Keller como Sonya, a esposa vista em lembranças. O filme é uma comédia dramática de 2022 que refaz para o subúrbio americano a história já levada ao cinema em “Um Homem Chamado Ove”, adaptação do romance homônimo de Fredrik Backman. A nova versão mantém a base narrativa: um idoso amargo planeja a própria morte, mas vê seus planos interrompidos por incidentes domésticos e pela insistência dos vizinhos em pedir ajuda e companhia.

A narrativa acompanha Otto em sucessivas tentativas de se afastar da vida, sempre frustradas por demandas práticas dos outros. Um carro que precisa ser rebocado, um marido atrapalhado que não domina ferramentas básicas, uma vizinha grávida sobrecarregada, um jovem expulso de casa por ser quem é. Esses encontros repetidos obrigam o personagem a circular mais pelo bairro, ouvir histórias alheias e lembrar da própria. A cada visita inesperada, o domínio que ele acredita exercer sobre a rotina perde força, e o que antes parecia apenas controle passa a revelar medo de ficar totalmente sem laços.

Forster conduz essa mudança de maneira gradual. A introdução apresenta Otto como figura quase caricata, centrada em rituais rígidos e comentários ríspidos. Com o avanço da trama, o tom se desloca para um registro mais dramático, em que o passado amoroso com Sonya ocupa um espaço crescente por meio de flashbacks. As cenas que mostram o casal se conhecendo, viajando de trem e enfrentando reveses transformam o velho irritado em viúvo ainda preso à memória da pessoa que lhe deu direção. O contraste entre o presente desbotado e o passado luminoso organiza o movimento emocional do filme.

Tom Hanks trabalha essa transição com atenção aos detalhes físicos. O modo como Otto anda pelas ruas, com passos firmes e ombros enrijecidos, expressa resistência. Aos poucos, o corpo começa a ceder em pequenas concessões: um café aceito à contragosto, um sorriso quase imperceptível diante das crianças, um gesto de proteção automático. A rabugice nunca desaparece, mas passa a dividir espaço com sinais de cuidado. O filme aposta nessa ambiguidade para manter o personagem próximo do público, sem transformá-lo em santo arrependido nem deixá-lo preso à figura de tirano doméstico.

Mariana Treviño assume papel central na dinâmica dramática. Marisol não se intimida com os resmungos de Otto, insiste em pedir orientação, oferece comida, traz notícias e obriga o vizinho a participar de problemas que ele preferiria ignorar. A atriz dosa bem humor e firmeza, evitando que a personagem se torne apenas figura engraçada ou símbolo de virtude. Marisol também enfrenta suas frustrações, carrega responsabilidades familiares e reage com impaciência quando percebe que Otto usa o mau humor como escudo para fugir de qualquer vínculo. Essa relação de confronto afetuoso sustenta boa parte da força emotiva do filme.

A direção de Forster privilegia clareza e acessibilidade. A fotografia apresenta o bairro como espaço organizado, de ruas limpas e casas semelhantes, com luz mais fria nas cenas em que Otto circula sozinho e tonalidades mais quentes nos momentos de convivência. Os flashbacks adotam composição um pouco mais suave, com cores menos duras, sugerindo lembranças filtradas pela afetividade. Não há grandes experimentos visuais, mas há um cuidado evidente em tornar legível cada mudança de humor e de tempo, o que favorece o acompanhamento da trajetória do protagonista por diferentes faixas de público.

O trabalho de som reforça essa abordagem. O silêncio dentro da casa de Otto destaca a ausência de vozes e de movimento, enquanto o lado de fora traz ruídos de crianças, reformas, motores e conversas. Quando a casa passa a receber visitas com mais frequência, as variações sonoras indicam que aquele espaço fechado volta a ser atravessado por vida e conflito. A trilha musical opta por melodias que sublinham a emoção de maneira direta, em especial nas cenas de lembrança e nas sequências em que o personagem precisa tomar decisões difíceis. Em alguns pontos essa escolha se aproxima do melodrama, mas corresponde ao projeto de comédia dramática voltada a um público amplo.

O roteiro amplia o elenco secundário em comparação com muitas histórias centradas em um único protagonista. Há o casal de vizinhos mais jovens, o entregador que busca reconhecimento, o amigo antigo que enfrenta doença e tem a autonomia ameaçada, além de personagens que representam minorias frequentemente expostas a preconceitos. Ao interagir com esse conjunto, Otto se torna mediador involuntário de conflitos de vizinhança e acaba retomando um papel de responsabilidade que julgava encerrado com a morte de Sonya. Cada intervenção revela um pouco da ética pessoal que o orienta, por trás da aparência de dureza.

Como remake, “O Pior Vizinho do Mundo” prefere a via da acomodação à tentativa de ruptura radical com o modelo sueco. Mantém a espinha dorsal da trama, atualiza referências culturais para o público americano e confia na figura de Tom Hanks como atalho de empatia. A aposta em humor mais macio e em resolução emocional clara reduz a aspereza que poderia aproximar o filme de um retrato mais sombrio da velhice, mas reforça a vocação para funcionar como drama de consolo. A história chega ao público como convite a enxergar o vizinho estranho com um pouco mais de curiosidade e menos indiferença, em bairros onde as regras de convivência já não dão conta de tudo o que circula entre uma porta e outra.

Filme: O Pior Vizinho do Mundo
Diretor: Marc Forster
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★