Suspense de Gore Verbinski com Mia Goth, na Netflix, arranca você da zona de conforto e não devolve Divulgação / Twentieth Century Fox

Suspense de Gore Verbinski com Mia Goth, na Netflix, arranca você da zona de conforto e não devolve

A paisagem inicial de A Cura parece construída para desorientar. A inquietação se instala antes mesmo que Lockhart, interpretado por Dane DeHaan, desembarque no sanatório alpino onde sua empresa o envia para recuperar o CEO ausente. O que começa como um deslocamento breve se converte em um percurso sem retornos fáceis, e a disciplina narrativa adotada por Gore Verbinski conduz cada etapa desse processo com uma rigidez perturbadora. O filme não depende de truques óbvios para tensionar o olhar; prefere organizar seu enigma em camadas cuja lógica se revela apenas quando o espectador percebe que a estrutura inteira funciona como um teste moral para o protagonista.

Lockhart é apresentado como um profissional moldado por um ambiente corporativo que exige velocidade, agressividade e ausência de escrúpulos. Verbinski aproveita essa postura pragmática para instaurar o contraste central do filme: a mentalidade produtivista transportada para um espaço que interrompe qualquer sensação de fluxo. Assim que o personagem chega ao local administrado por Volmer, vivido por Jason Isaacs, percebe que o funcionamento interno do sanatório não respeita os parâmetros de eficiência que orientam seu cotidiano. Os pacientes circulam com a lentidão de quem se resignou e aceitou um tipo de estagnação confortável. A promessa de cura assume um sentido quase ritualístico, um discurso sobre purificação que se apoia mais em fé do que em ciência.

Essa ruptura inicial se agrava depois do acidente que impede Lockhart de retornar aos Estados Unidos. A partir desse momento, a narrativa passa a operar num ritmo calculado para desgastar as convicções do protagonista. O roteiro estende deliberadamente os episódios de investigação, multiplicando pequenos indícios de que o sanatório protege segredos ligados a experimentos antigos, silenciados ao longo do tempo. Hannah, interpretada por Mia Goth, funciona como eixo dessa colisão entre inocência e manipulação. A presença da jovem, deslocada do restante dos pacientes e mantida sob vigilância por Volmer, sugere que a instituição sustenta uma lógica de poder amparada no controle psicológico.

O filme emprega esse descompasso para reforçar a transição interna de Lockhart, que passa do ceticismo arrogante a uma forma crescente de paranoia. Verbinski utiliza a arquitetura do castelo e a repetição de procedimentos terapêuticos para instaurar um ambiente em que a razão perde terreno. O espectador acompanha a deterioração do personagem não por meio de explicações didáticas, mas pela maneira como as rotinas do sanatório se tornam opressivas. Em alguns momentos, a fronteira entre alucinação e fato objetivo permanece propositadamente indistinta, exigindo que se observe o comportamento de Lockhart para perceber o quanto a própria noção de sanidade se fragiliza.

A narrativa expõe, aos poucos, o elo entre a história do local e a figura de Volmer. Há algo de calculado na postura cordial do diretor, que jamais se altera, independentemente da pressão exercida por Lockhart. Essa constante indica que o sanatório age como um organismo autônomo, onde os indivíduos se tornam peças substituíveis. O passado aristocrático ligado à propriedade, que envolve pesquisas sobre longevidade e métodos extremos de preservação do corpo, serve como chave para compreender por que nenhum paciente deseja partir. A permanência ganha aparência de escolha, mas responde a um condicionamento contínuo. Verbinski organiza esse mecanismo com uma frieza que ecoa a própria lógica das corporações das quais Lockhart é produto.

A partir de certo ponto, o filme abandona qualquer intensão de normalidade. A construção visual, embora marcada por rigor técnico, funciona menos como enfeite e mais como ferramenta narrativa. Os corredores estreitos, os tanques de imersão e a simetria insistente de certos enquadramentos criam um ambiente em que tudo parece supervisionado, como se o castelo estivesse sempre à frente das intenções do protagonista. O uso recorrente da água reforça essa noção de confinamento: um elemento associado à purificação, mas que aqui se converte em instrumento de submissão. Ao mesmo tempo, a investigação de Lockhart o conduz a uma sequência de descobertas que ligam o destino dos pacientes a práticas de extração vital, fazendo com que a promessa de cura se revele uma estratégia de captura.

A intensidade dos acontecimentos culmina em revelações que pressionam a verossimilhança, especialmente no terço final. Mesmo assim, o excesso não anula o caminho percorrido. Verbinski trabalha a deterioração física e psicológica de Lockhart de modo que cada exagero funcione como síntese do processo iniciado desde sua chegada. O arco do protagonista transforma-se em alegoria sobre sociedades que reduzem indivíduos a recursos, submetendo-os a rotinas embaladas pelo discurso de bem-estar. A ambição de Lockhart, que no início servia como motivação prática, torna-se combustível para sua própria ruína.

O ponto mais instigante de A Cura está justamente na forma como articula essa visão sobre poder, saúde e controle. O sanatório funciona como laboratório de uma utopia distorcida, onde o ideal de equilíbrio se traduz em sacrifícios silenciosos. A lógica interna daquele espaço reflete sistemas que prometem estabilidade, desde que se aceite abrir mão da autonomia. Verbinski investe na sugestão de que a obsessão por pureza, longe de produzir melhoria, gera enclaves incapazes de reconhecer humanidade.

A sensação que permanece ao término do filme não depende da imposição de respostas, mas do desconforto gerado pela constatação de que a busca por bem-estar pode ser instrumentalizada com facilidade. Lockhart não retorna ao mundo externo como alguém transformado para melhor; retorna como produto de um ambiente que o modelou segundo seus interesses. Essa conclusão, ao invés de oferecer conforto, amplia o alcance da crítica implícita no enredo. A integridade do indivíduo, naquele universo, não é preservada porque nunca foi prioridade. Essa percepção dá ao filme um peso particular, capaz de acompanhar o espectador muito depois dos créditos.

Filme: A Cura
Diretor: Gore Verbinski
Ano: 2016
Gênero: Drama/Fantasia/Ficção Científica/Mistério/Suspense/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.