A prosa de Valter Hugo Mãe rejeita parâmetros. Há uma música especial no modo como Mãe compõe imagens e metáforas, como se cada palavra fosse escolhida para tocar quem lê. Dores, morte e, principalmente, a solidão não perdem nada de sua natureza destrutiva, mas são tratados com brandura, num cálculo que exige técnica e sensibilidade. Não é todo mundo que alcança esse equilíbrio de distanciamento e pendor para a fantasia usados pelo escritor para discorrer sobre os assuntos mais espinhosos da condição humana e por essa razão é tão difícil adaptar para o cinema tramas como “O Filho de Mil Homens”. Daniel Rezende lança sua rede nesse oceano de possibilidades, muito certo do que quer e do que pode ter. Celebrado como editor de “Cidade de Deus” (2002), dirigido por Fernando Meirelles, e “7 Dias em Entebbe” (2018), levado à tela por José Padilha, Rezende é um diretor cuidadoso, atento aos detalhes próprios de seu ofício, e acha no livro de Mãe, um angolano radicado em Portugal, uma fonte inesgotável para elaborações poéticas.
Eventos pouco convencionais se dão no inominado vilarejo à beira-mar onde se passa a história. Uma habitante do lugar descobre um menino vivendo com o cadáver do avô, alimentando-se de atum enlatado, e o diretor só explica esse preâmbulo algum tempo depois. Enquanto isso, o texto de Rezende e Duda Casoni espraia-se pelos tipos que preenchem aquela geografia, até chegar a Crisóstomo, um ermitão sobre quem quase nada se sabe, isolado em seu próprio mundo com o mar por quintal. Ele tira das ondas seu sustento, vende uma parte numa cooperativa doméstica, mas leva um bom robalo para casa. Cenas do personagem eviscerando peixes se sucedem numa frequência meio nauseante, tudo para persuadir o espectador de que Crisóstomo é mesmo um sujeito pacato, obcecado com a ideia de vencer a morte de alguma forma e seguir vivo num outro alguém. O pai sem filho espalha mensagens na feira à procura de um filho sem pai, e por uma dessas ironias do destino, Camilo, aquele garoto órfão cujo avô morrera, é justamente quem está buscando. Na virada do segundo para o terceiro ato, Rezende esclarece a origem de Camilo, o tal filho de mil homens, detendo-se na subtrama de Francisca, uma lasciva mulher portadora de nanismo, e Juliana Caldas transforma o filme. O Camilo de Miguel Martines fica cada melhor, num amálgama perfeito de melancolia precoce e inocência, estrela em merecida ascensão. Sim, há Rodrigo Santoro, o ator mais esforçado do Brasil; como de hábito, quanto menos Santoro fala, melhor se sai.
★★★★★★★★★★

