Em “Gun City”, a ação começa quando um trem militar é atacado e carregamentos de armas desaparecem, deixando soldados mortos na linha férrea. O temor é que o armamento vá parar nas mãos de grupos dispostos a incendiar uma Espanha já dividida por conflitos trabalhistas e disputas ideológicas. Para conter o risco de um levante armado, o governo envia de Madri o agente Aníbal Uriarte a Barcelona, encarregado de atuar com a polícia local, identificar responsáveis pelo roubo e evitar que as armas sejam usadas para acender uma guerra nas ruas.
Dirigido por Dani de la Torre e lançado em 2018, o filme tem Luis Tosar no papel de Uriarte, com Michelle Jenner, Vicente Romero, Manolo Solo, Paco Tous e Jaime Lorente em papéis centrais. O título original, “La sombra de la ley”, reforça a ideia de uma cidade em que a lei oficial convive com códigos paralelos, definidos por gângsteres, industriais e chefes de polícia. A partir da chegada do protagonista à delegacia, a trama expõe uma Barcelona em estado de tensão permanente, dividida entre sindicatos, patrões, grupos anarquistas e forças de segurança que atuam com pouca supervisão.
Uriarte surge como policial experiente, veterano de guerra e dono de reputação ambígua. Ele carrega o histórico de métodos duros e de missões concluídas a qualquer custo, o que desperta desconfiança tanto entre colegas quanto entre criminosos. Ao ser apresentado aos chefes da polícia local, encontra uma corporação disposta a reprimir greves com brutalidade, utilizar informantes de maneira oportunista e negociar silêncios com quem controla determinados bairros. Nesse ambiente, o investigador precisa negociar com gângsteres, sondar líderes anarquistas e suportar a vigilância de superiores que hesitam em revelar todos os interesses por trás da operação.
A investigação é construída a partir de deslocamentos constantes pela cidade: delegacia, fábricas, prostíbulos, cabarés, sindicatos e mansões de empresários formam o circuito que Uriarte percorre ao lado de parceiros locais. A cada nova pista sobre o destino das armas, o agente se aproxima de uma teia de acordos entre polícia e crime organizado, na qual favores e ameaças valem tanto quanto qualquer documento oficial. Dani de la Torre imprime ritmo atento às cenas de perseguição e confronto, cuidando para que seja possível acompanhar quem avança, quem recua e de onde vêm tiros e emboscadas. A geografia dos espaços é mantida clara, com uso de planos mais abertos antes de se aproximar de rostos e armas.
A Barcelona retratada pelo filme é uma cidade industrial em transição, coberta por fumaça de fábricas, trilhos de bonde e ruas onde convivem cortiços e cafés refinados. A fotografia se apoia em tons escuros, neblina e luz difusa nas áreas operárias, enquanto interiores de clubes, escritórios e salões oficiais aparecem mais aquecidos, com dourados e madeira polida. Essa diferença visual sublinha a distância entre quem decide estratégias políticas a partir de gabinetes e quem sofre a repressão em assembleias e piquetes. A ambientação de época investe em figurinos, veículos e armamentos condizentes com o período, integrados às cenas de patrulha e ataque.
Luis Tosar compõe um Uriarte endurecido, mas observador. Ele não se apresenta como herói incorruptível, e o filme não esconde sua capacidade de intimidar e usar violência quando julga necessário. A ambiguidade aparece em reações contidas a torturas e execuções que presencia, indicando incômodo com o que vê dentro da própria polícia. Michelle Jenner, como Sara, filha de um líder sindical, representa o olhar dos trabalhadores que se veem entre o risco de aderir à luta armada e o perigo de confiar em negociações conduzidas por autoridades que os tratam como inimigos. A interação entre os dois é marcada por desconfiança, diálogos tensos e aproximações pontuais em situações de perigo comum.
Os coadjuvantes reforçam o quadro de múltiplos interesses. Empresários pressionam o governo por ações enérgicas, temendo que as armas roubadas fortaleçam greves e atentados. Gângsteres enxergam no caos uma oportunidade de ampliar controle sobre bairros e negócios. Líderes anarquistas debatem a possibilidade de enfrentar o Estado com poder de fogo equivalente, enquanto lidam com infiltrações e traições internas. O filme mostra como o roubo do carregamento militar interessa a todos esses grupos por motivos diferentes, convertendo a investigação em disputa mais ampla por influência política e domínio territorial.
O trabalho de som acompanha o clima de cidade em ponto de ebulição. Chamadas de fábrica, vozes de multidões, sirenes, motores e passos apressados se misturam a temas musicais que marcam momentos de maior tensão, sem apagar a presença constante do ambiente urbano. Cenas de preparação para ações policiais ou encontros clandestinos são muitas vezes filmadas com economia de falas, deixando barulhos de cadeiras, portas e copos assumirem a frente enquanto personagens avaliam riscos e alianças. Essa escolha reforça a impressão de que qualquer conversa pode evoluir rapidamente para confronto armado.
“Gun City” se apresenta como thriller policial que integra ação e drama histórico. A violência não aparece apenas em tiroteios e perseguições, mas também como ferramenta cotidiana usada por Estado e crime para calibrar negociações e impor medo. Ao acompanhar Uriarte no trânsito entre delegacia, rua e bastidores de sindicatos, o longa evidencia um sistema em que a aplicação da lei depende menos de princípios jurídicos e mais de quem controla armas, dinheiro e informação. A ideia de uma cidade regida pela sombra da lei se materializa nas alianças instáveis que sustentam a ordem aparente de Barcelona em 1921.
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