Baseado em arquivos reais do Vaticano, um dos filmes mais assustadores da década acaba de estrear na Netflix Divulgação / Sony Pictures

Baseado em arquivos reais do Vaticano, um dos filmes mais assustadores da década acaba de estrear na Netflix

Uma família em luto se muda para uma antiga abadia na Espanha, à procura de recomeço e alguma estabilidade depois da morte do pai. O prédio, amplo e degradado, parece oferecer abrigo temporário, até que o filho mais novo passa a exibir comportamentos alarmantes. O menino se isola, fala com alguém que não está em cena, sofre contorções violentas e manifesta conhecimento sobre segredos dos parentes. Médicos são chamados, exames são feitos, mas as explicações soam insuficientes diante da gravidade do quadro, e a mãe se vê empurrada para um pedido de ajuda à Igreja.

É nesse ponto que “O Exorcista do Papa” apresenta o padre Gabriele Amorth, vivido por Russell Crowe, exorcista oficial do Vaticano encarregado de avaliar casos suspeitos ao redor do mundo. Dirigido por Julius Avery, o filme conta com Daniel Zovatto como o jovem padre Esquibel, Alex Essoe na pele da mãe Julia e Franco Nero como o Papa. A narrativa se apoia em livros de não ficção escritos pelo próprio Amorth, que reuniu relatos de décadas de atuação em obras como An Exorcist Tells His Story e An Exorcist: More Stories, usados aqui como base livre para ficção.

Avery escolhe apresentar Amorth como figura carismática, irônica e segura de si. O padre discute decisões com cardeais, provoca colegas mais céticos e circula por Roma com confiança de quem conhece os bastidores da instituição. Em vez de um personagem consumido pela dúvida, surge alguém que já enfrentou situações extremas e desenvolveu uma rotina para separar casos de saúde mental de eventuais manifestações sobrenaturais. Essa segurança passa para o espectador e muda o tipo de suspense, que deixa de se concentrar em saber se o mal existe e passa a observar como o exorcista pretende conter a ameaça.

A ida à abadia desloca a ação para um cenário que concentra a maior parte da tensão. O lugar reúne símbolos religiosos, passagens bloqueadas e áreas em ruína, onde paredes rachadas e corredores escuros insinuam um passado de violência e segredos. Amorth e Esquibel investigam o entorno do menino possuído, identificam sinais de atividade demoníaca e percebem que o prédio guarda marcas físicas de algo mais antigo que o drama da família recém-chegada. A arquitetura funciona como extensão da presença maligna, que parece infiltrar cada cômodo, tomar objetos e transformar o isolamento da propriedade em condição de vulnerabilidade extrema.

Como terror, “O Exorcista do Papa” se ancora em elementos consagrados do subgênero de exorcismo. A voz do garoto ganha timbre mais grave, frases em latim surgem durante crises, o corpo do personagem se dobra de maneiras antinaturais e insultos contra símbolos sagrados reduzem a sensação de proteção da cruz e da água benta. A trilha sonora aumenta de forma súbita a cada manifestação, e o desenho de som usa sussurros, passos pesados e estalos vindos de cômodos vazios para alimentar a suspeita de que algo observa os personagens de pontos cegos. A ameaça se anuncia por ruídos, sombras e pequenos deslocamentos antes de explodir em ataques abertos.

A câmera acompanha esse processo com movimentos frequentes. Nas cenas de exorcismo, aproxima rostos, registra olhos revirados e corta rapidamente entre possuído, sacerdotes e objetos religiosos em risco. Essa cadência restringe o tempo de contemplação silenciosa e mantém a sensação de instabilidade constante, o que favorece descargas de medo rápidas e repetidas. Ao mesmo tempo, reduz a construção gradual de clima, já que poucos planos permanecem longos o bastante para que o espectador explore com calma o espaço ao redor dos personagens. A experiência se aproxima da lógica de confrontos sucessivos que pressionam o grupo dentro de um território controlado pela entidade.

A narrativa intercala o confinamento na abadia com reuniões no Vaticano, onde a hierarquia tenta conter o alcance da crise. Cardeais se dividem entre a necessidade de investigar e o receio de admitir a dimensão do problema, enquanto documentos antigos revelam ligações entre a figura demoníaca atual e episódios enterrados nos registros da Igreja. Essas passagens colocam o demônio não apenas como inimigo externo, mas como consequência de escolhas políticas tomadas em períodos de intolerância e perseguição religiosa. O mal, assim, se alimenta de pecados institucionais que foram empurrados para porões e catacumbas, em vez de encarados à luz do dia.

Ao lado do tema da culpa coletiva, o filme dedica tempo à relação entre Amorth e Esquibel. O padre mais velho avalia o colega, critica falhas em sua trajetória e propõe um aprendizado acelerado dentro do próprio campo de batalha. O jovem sacerdote, marcado por erros anteriores, hesita diante da responsabilidade e precisa recuperar alguma confiança para enfrentar a situação. Nesse eixo, a história inclui momentos de confissão, aconselhamento e contraste entre tradição e renovação, mesmo que o foco continue voltado para o enfrentamento do demônio que domina o menino.

A fotografia reforça as diferenças entre Roma e Espanha. No Vaticano, predominam interiores bem delimitados, com salas iluminadas de forma controlada, onde cada figura ocupa posição clara na hierarquia. Na abadia, a luz entra por frestas, encontra poeira suspensa e recorta silhuetas contra janelas altas, o que acentua a ideia de espaço contaminado. À noite, o filme aposta em silhuetas recortadas por velas, lanternas e pequenos focos de iluminação, que não dão conta de revelar todo o cenário e mantêm a sensação de que algo se esconde nos limites do quadro.

Os efeitos digitais aparecem com intensidade crescente na segunda metade, quando o confronto ganha escala visual maior. Aparições infernais, chamas e distorções físicas mais radicais ampliam o embate entre sacerdotes e demônio, aproximando certas passagens do terreno da fantasia de combate espiritual. Em alguns momentos, essa opção enfraquece o desconforto ligado ao corpo do menino, já que o horror se desloca da fragilidade humana para imagens de espetáculo, mas também deixa claro que a proposta se inclina à ação sobrenatural de alta intensidade. O filme insiste nessa via até o desfecho, com cenário e personagens plenamente dominados pelo conflito.

Russell Crowe conduz esse percurso com presença que mistura ironia e desgaste. Seu Amorth demonstra memória de casos anteriores, cita experiências passadas e se permite piadas discretas mesmo diante de manifestações graves, o que afasta parte do peso trágico e aproxima o personagem de um profissional calejado. Daniel Zovatto sustenta a posição de pupilo em busca de redenção, e a dinâmica entre os dois cria respiros entre ataques, reforçados por pequenas trocas de olhar, reprovações e tentativas de encorajamento.

A mãe interpretada por Alex Essoe representa o elo afetivo central da família, tentando manter rotinas mínimas para os filhos dentro de um espaço cada vez mais hostil. Franco Nero, como o Papa, aparece em cenas que acompanham o avanço da crise e traduzem a dificuldade da instituição em assumir os riscos que ajudou a criar. Essas figuras ancoram o horror em rostos reconhecíveis, para além do duelo simbólico entre bem e mal.

“O Exorcista do Papa” combina procedimentos do terror sobrenatural com elementos de aventura investigativa, priorizando sustos frequentes, confrontos físicos com a entidade e investigação de arquivos e passagens ocultas. A opção por ritmo acelerado deixa menos espaço para angústia silenciosa, mas produz uma sucessão de choques em que fé, culpa e burocracia se enfrentam em salas, túneis e criptas. Ao concentrar o conflito em uma abadia cheia de frestas, símbolos religiosos quebrados e câmaras escondidas, o filme aponta para um universo em que cada pedra, crucifixo e corredor escuro registra a disputa entre decisões humanas e forças que essas decisões afirmam tentar conter.

Filme: O Exorcista do Papa
Diretor: Julius Avery
Ano: 2023
Gênero: horror/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★