Vá ser bonita assim em Jijoca de Jericoacoara

Vá ser bonita assim em Jijoca de Jericoacoara

Quando Mazinho despertou percebeu que estava internado numa Unidade de Terapia Intensiva. Os esforços médicos para extirpar um tumor que o carcomia por dentro tinham sido mal sucedidos. À primeira vista, ficou contrariado em saber que a próstata velha-de-guerra continuava viva, sã e salva, incrustada no miolo da pélvis, bojuda como uma fruta-do-conde, aporrinhando a sua bexiga urinária. Provou da comida de hospital que lhe foi servida e não achou tão ruim quanto diziam. Uma enfermeira se aproximou para injetar medicamentos nas suas combalidas veias de moribundo senil.

— Bom dia, minha amiga. Como vai?

— Levando, Seu Osmar.

— Benza a Deus. Olha só, eu precisava ir até o banheiro — ele disse.

— Não entendi.

— Preciso usar o banheiro. Me aliviar. Sabe como é.

— Número 1 ou número 2?

A pergunta foi descabida, tendo em vista que Mazinho tinha uma sonda de bitola graúda, um longo canudo de borracha enfiado na uretra.

— Número 2.

— O senhor está na UTI. Não pode se levantar — ela disse, enquanto cuidava dos afazeres.

— Mas eu preciso ir ao banheiro. Estou apertado à beça.

— O senhor não pode se levantar, Seu Osmar. É perigoso. Pode sofrer uma síncope, cair e se ferir gravemente.

Mazinho não sabia o que era uma síncope. Supôs que fosse a mesma coisa que desfalecimento ou desmaio.

— Moça, eu preciso usar o banheiro. Para evacuar. Soltar um barrinho, se é que me entende.

— Eu já expliquei que o senhor não pode se levantar. São normas de segurança da UTI.

— E o que você propõe que eu faça? Estou passando por um perrengue danado.

— O senhor pode evacuar no leito mesmo. Está usando uma fralda descartável, percebe? Não tem problema.

Mazinho pensou que a enfermeira estivesse zoando com a cara dele.

— Desculpe, eu não entendi.

— O senhor pode fazer o número 2 na fralda, Seu Osmar. Não faz mal. Depois a gente limpa.

Mazinho emputeceu-se.

— Qual é a sua graça?

— Hein?

— Como se chama?

— Valentina.

— Valentina. Valentina é nome de mulher bonita. Todas as Valentinas que eu conheci na minha vida eram mulheres bonitas, tipo o pôr do sol em Jericoacoara, suponho que você conheça.

— Já ouvi falar.

— Acredite. É um lugar lindo. Você se importa de abaixar a máscara só um pouquinho para eu me certificar? Aposto que você não foge à regra.

A enfermeira estranhou, mas já estava acostumada a lidar com os pedidos esdrúxulos dos pacientes. Então, abaixou a máscara.

— Valentina, apesar de fazer jus à fama de beleza das Valentinas, serei obrigado a discordar de você. A ideia é que eu defeque deitado? Seria isso?   

— Exato. Todo mundo aqui faz isso. Todos os pacientes, quero dizer.

— Entendi. Então, você espera que eu me cague todo, numa boa, sem me importar com a humilhação, com a fedentina e, ainda por cima, curtindo o calorzinho peculiar e impregnante da merda que vai emporcalhar o meu traseiro?

— O senhor está sendo irônico. Todos os pacientes fazem isso. Estão enfermos. Gravemente enfermos. Já estamos acostumadas. Aliás, uma das minhas funções é higienizar os pacientes graves e comatosos.

— Não me sinto grave, muito menos, comatoso. De outra forma, não estaria aqui argumentando sobre o destino das minhas fezes.

— O senhor me desculpe. Tenho mais o que fazer. Infelizmente, não pode usar o banheiro. Faz parte do regulamento. Se precisar se aliviar, vai ter que ser aí mesmo, no leito, na fralda descartável, como os demais pacientes fazem. É assim que funciona.

— E se eu fosse o seu pai?

Valentina saiu irritada, sem responder, carregando a bandeja de medicamentos. Do local em que estava deitado, Mazinho ouvia o zunzunzum da equipe de saúde. Deviam estar falando sobre ele. Caçoando, com toda certeza.

— Alô! Oi! Alguém aí? Por favor, preciso de um médico. Alguém, por gentileza, me chame o doutor — ele gritou.

— Pois não, Seu Osmar.

— Olá. Bom dia. A senhora é a médica de plantão?

— Não, senhor. Eu sou a enfermeira chefe. O doutor está ocupado dissecando a veia de um paciente mais grave que o senhor.

— A senhora acha que eu me encontro num grave estado de saúde?

— Não é da minha alçada avaliar o quadro clínico dos pacientes internados, Seu Osmar. Porém, suponho que o senhor esteja grave, sim. Ou não estaria internado num leito de UTI.

— Entendo. Boa resposta. Vou lhe fazer um pedido simples: eu preciso usar o banheiro.

— Número 1 ou número 2?

Mazinho tinha vontade de arrancar o soro da veia e sair correndo daquele lugar gelado que cheirava a éter e desinfetante.

— Moça, eu só quero evacuar. Num banheiro. Sentado na droga do vaso sanitário. Igual todo mundo.

— Todo mundo aqui evacua no leito.

— A senhora também?

De tão raivosa, a mulher permaneceu calada. Uma das sobrancelhas tremia em movimentos involuntários.  

— Qual o seu nome, enfermeira chefe?

— Custódia.

— Custódia. Estou sob a sua custódia, Custódia? — Mazinho sorriu; a enfermeira, não.

— Preciso cuidar das minhas obrigações, Seu Osmar. Mais alguma coisa?

— A senhora já fez cocô deitada?

Custódia saiu enfezada. Mazinho se sentia firme, autoconfiante. Não eram páreo para ele.

— Seu Osmar?

— O próprio. Mas pode me chamar de Mazinho. Todos me conhecem como Mazinho.

— Sou o doutor Euclides, o médico plantonista. Como vai o senhor?

— Piorando a cada dia, graças a Deus. No momento, aliás, estou me sentindo apertado. Muito apertado. Doido para escorregar a anaconda, se é que me entende.

O médico sorriu. Gostava de cuidar de pacientes espirituosos.

— As enfermeiras já explicaram a situação para o senhor?

— Sim. Elas me explicaram. São muitos gentis e bonitas. Gentis, bonitas, porém, cruéis.

— Não diga isso. Elas são ótimas profissionais. Infelizmente, os rigorosos protocolos sanitários não permitem que o senhor caminhe pela UTI até o banheiro, por causa do risco de queda e de lesões. O senhor poderia se machucar gravemente, entende?

— Entendo perfeitamente. Mas, ponha-se no meu lugar, doutor Euclides. Seja sincero. Em sã consciência, o senhor obraria deitado, se tivesse a chance de fazer isso sentado na droga de um vaso sanitário?

O médico sorriu de novo e percebeu que Mazinho era um turrão duro na queda.

— Seu Osmar, o senhor me parece muito bem de saúde. No momento, não tenho como lhe dar alta, pois, estou esperando alguns resultados de exames. Provavelmente, vai descer para a enfermaria ainda hoje. Vamos fazer o seguinte: vou abrir uma exceção. Vou pedir que alguém o conduza até o banheiro numa cadeira de rodas. Pode ser? Um meio termo. O senhor concorda?

— Negócio fechado, doc.

O médico saiu e logo apareceu um sujeito enorme manejando uma cadeira de rodas. Mazinho sentou-se no leito. Sentiu uma vertigem. Seria a síncope de que falava Valentina? Tarde demais para desfalecer. Firmou o corpo. Achou o prumo. Auxiliado pelo homenzarrão, ajeitou-se na cadeira segurando com uma das mãos o frasco de soro para o alto, como se fora o troféu da teimosia. Sob as óbvias limitações físicas de um octogenário adoecido, ele se sentou no trono, como um rei, e finalmente aliviou o intestino. Foi o último ato de rebeldia, antes de morrer dormindo, que nem passarinho, prestes a descer para a enfermaria onde Dona Valentina, a esposa, aguardava por ele.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 60 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.