Ninguém pode saber o que acontece entre as quatro paredes de uma família, um círculo de paixões e segredos regido por vigorosos mecanismos hierárquicos. Quando um vínculo se rompe, o silêncio torna-se mais eloquente que qualquer discussão, denunciando aquilo que todos receiam nomear. Nos lares ao redor do mundo coexistem ternura e ressentimento, esperança e frustração, lealdade e servilismo, terreno fértil para mistérios e artimanhas. Rowan Joffé escancara as tantas hipocrisias malévolas de um casal em “Antes de Dormir”, um suspense nitidamente influenciado por Hitchcock e De Palma, mantido em fogo baixo — até que ferve de uma vez. Baseado no romance psicológico homônimo de S.J. Watson, de 2014, o diretor-roteirista repete o que faz Peter Segal em “Como Se Fosse a Primeira Vez” (2004), num tratamento cômico, por óbvio, e é parcialmente copiado por Nour Wazzi em “Paralisia” (2023). Em todos eles, estão o velho e bom Hitch e seu epígono de maior talento.
Há algum tempo, a amnésia psicogênica faz parte da rotina de Christine Lucas. Pouco depois de se casar com Ben, ela tivera de aprender novamente tudo sobre si mesma, enquanto recuperava-se do acidente de carro que deixou-lhe uma sequela grave. A amnésia psicogênica acabou com qualquer chance de uma vida minimamente normal, e ela é obrigada a passar pelo suplício de não saber quem é, lembrando-se do que aconteceu há catorze anos graças a um ou outro lampejo fugaz. Christine acorda, nua, meio apavorada, dirige-se ao banheiro, e vê um mural com imagens e as informações que precisa decorar para não perder-se no seu labirinto, pelo até o outro dia. Perturbadora, essa sequência prepara o espírito do público, embora não seja fácil que alguém possa reconhecer-se nela. Joffé robustece a aura onírica do enredo utilizando-se da fotografia soturna de Ben Davis e da edição habilidosa de Melanie Oliver, e a essa altura quem assiste já espera por uma reviravolta.
Aos poucos, a trama desloca-se do núcleo doméstico para a relação de Christine com o doutor Nasch, o neuropsicólogo que estuda o seu caso. Ela fala do casamento, da sensação de eterno incômodo com a vida ao lado de Ben, de não saber o que pensar a respeito de tudo isso, e o eixo do longa move-se de uma esposa e um marido em permanente crise para uma mulher prestes a descobrir um facho de luz no breu mais profundo. Se no primeiro ato Nicole Kidman e Colin Firth garantem boa parte do interesse da audiência, o bom andamento perdura graças a Mark Strong e sua famosa capacidade de transformar papéis irrelevantes à primeira vista. A sugestão de Nasch para que sua paciente registre suas memórias imediatas com a câmera digital que esconde no fundo do guarda-roupa arrasta o filme para a virada da narrativa, momento em que Kidman e Firth, quase sumido, volte e mostre o verdadeiro Ben. “Antes de Dormir” faz o básico, e agrada.
★★★★★★★★★★

