A recepção estava apinhada de gente. Alguém se levantou cedendo lugar para uma mulher que usava muletas. Um guri muito miúdo e curioso escapuliu da vigilância da mãe e se aproximou dela.
— O que aconteceu com a sua perna?
Ela sorriu.
— Qual o seu nome, menino?
— Akin.
— Olá, Akin. O meu nome é Yelissa.
— Por que você não tem perna?
Sem disfarçar o constrangimento, a mãe acorreu, afastou a criança e pediu desculpas pelo transtorno. Assustado, o garoto explicou que só queria saber por que a mulher de muletas tinha uma perna a menos do que todo mundo ali.
— Não se preocupe, senhora. Eu não me incomodo. Venha até aqui, Akin.
O pequeno hesitou, olhou para a mãe e ela acabou assentindo.
— Quer mesmo saber o que aconteceu com a minha perna, Akin?
O menino de olhos vívidos permaneceu calado, na expectativa da revelação.
— Foi um crocodilo.
— Um crocodilo? — ele arregalou os olhinhos.
— Um crocodilo. E dos grandes.
— Um crocodilo te mordeu?
— Sim. Um crocodilo me mordeu. E foi uma baita mordida, Akin.
— Você chorou?
— Chorei. Eu chorei, mas, foi de raiva daquele safado. Nem doeu, sabia?
O garotinho ficou encantado com a história.
— Por que você não correu do crocodilo?
— Porque não deu tempo. Eu estava lavando roupas no rio e, quando me dei conta, nhac! Ele já tinha arrancado a minha perna numa só bocada.
— Nossa…
— Pra você ver, Akin.
Fazia um calor irritante. Enquanto aguardavam a sua vez, os demais pacientes ouviam com descaso a conversa entre a mulher e o menino.
— Vai crescer uma perna nova?
Um homem cego gargalhou e acabou recebendo uma cotovelada da esposa nas costelas. A mãe teve vontade de evaporar, mas acabou não intervindo.
— Infelizmente, não, Akin. Seria ótimo se isso acontecesse, né? Imagina só se as pessoas fossem como as plantas. Rapidinho cresceria outra perna no lugar da arrancada, novinha em folha, como se fosse um galho de baobá.
O menino sorriu.
— Pode pegar?
A mãe não aguentou, levantou de forma atabalhoada, derrubou uma pilha de exames no chão e ralhou com o infante, puxando-o com raiva pelo braço.
— Calma, dona. Vai acabar arrancando o braço do coitadinho. Não vai querer virar crocodilo também, vai?
Sãos e moribundos gargalharam com o chiste da amputada.
— Deixe o menino. Pode vir, Akin. Você pode tocar na minha coxa, não tem nenhum problema.
Enquanto a genitora catava a papelada no chão, o pirralho se aproximou novamente da mulher de uma perna só.
— Pronto. Não tenha medo. Pode colocar a mãozinha aqui.
— Vai doer?
— Não. Não vai doer.
O menino tocou o coto femoral.
— É fofinho.
— Sim, Akin. É fofinho.
O menino ficou radiante e olhou com satisfação para a mãe que, resignada, sorriu de volta.
— Yelissa! Yelissa Bazin! — uma das enfermeiras gritou, orientando que ela entrasse imediatamente no consultório do ortopedista.
— Preciso ir agora, Akin. Gostei muito de você. Porque não teve medo de mim.
— Não tenho medo de crocodilo, sabia?
— Eu logo percebi o quanto você é valente, meu pequeno. Mesmo assim, por precaução, fique longe de crocodilos. Eles são uns encrenqueiros.
O moleque faceiro correu para o colo da mãe. Passados cerca de vinte minutos, Yelissa saiu do consultório, ainda apoiada em muletas, mas, levando afixada no corpo uma prótese que fora doada pela Medecins Sans Frontieres. Akin ainda esperava a sua vez de se consultar quando foi surpreendido pela cena.
— Olha, mamãe, a perna dela cresceu de novo.
Todos riram mais uma vez. Inclusive, a esposa do homem cego que, assim como Yelissa, engrossava a lista de civis mutilados pelas minas terrestres que cresciam mais do que os baobás em solo africano.