A rejeição a determinados alimentos existe em muitas culturas e épocas e nasce do encontro entre sentidos, química e controle sanitário. Para entender por que certos preparos causam estranhamento em quem não cresceu com eles, a Revista Bula consultou literatura técnica e documentos de referência em ciências gastronômicas e de alimentos, com materiais de Harvard Science & Cooking, Basque Culinary Center, University of Gastronomic Sciences, UC Davis, Universidade de Copenhague, Universidade Técnica de Munique, ETH Zürich e Quadram Institute. A análise reuniu resultados de testes sensoriais, identificação de compostos voláteis ligados a odores intensos — aminas biogênicas, compostos sulfurados e amônia — e parâmetros de segurança aplicados a práticas tradicionais.
Entre os exemplos, o kiviak traduz uma resposta ao inverno ártico. Comunidades inuit acondicionam pequenas aves marinhas no interior da pele de uma foca, selam o conjunto e deixam que a fermentação conserve o alimento por meses sob o frio. Quando o manejo é cuidadoso, cumpre sua função; quando falha, o risco sanitário aumenta, motivo pelo qual acervos técnicos descrevem procedimentos para reduzir erros. Na Suécia, o surströmming — arenque do Báltico que continua fermentando na lata — costuma ser aberto ao ar livre devido ao odor muito marcado e integra calendários regionais, servido com pão fino, batata, cebola e creme azedo.
A Islândia mantém o hákarl, carne de tubarão-da-Groenlândia que só se torna comestível após cura, fermentação e secagem prolongadas. O processo reduz compostos nitrogenados naturalmente presentes no peixe, responsáveis por aroma amoniacal característico. Nas Filipinas, o balut é um ovo de pato fertilizado, incubado por cerca de duas semanas e consumido ainda quente. Presença constante em mercados de rua, sustenta cadeias econômicas locais e circula por países vizinhos do Sudeste Asiático.
Na Sardenha, o casu marzu conclui sua maturação com a ação de larvas na massa do queijo de ovelha, o que intensifica aroma e textura. A venda é proibida por normas sanitárias modernas, mas o consumo sobrevive em circuitos familiares, preservando técnicas transmitidas de geração em geração.
Vistos lado a lado, esses casos mostram como perfis químicos intensos, aliados a processos que pedem controle rigoroso, costumam acionar rejeições sensoriais em públicos não familiarizados. A leitura que combina análise sensorial, química de alimentos e segurança ajuda a situar cada prática sem desautorizar seus significados locais: o que provoca recuo imediato para uns integra a memória, a geografia e a identidade de outros.

Kiviak, também escrito kiviaq, é um alimento tradicional inuit preparado para atravessar o inverno ártico e celebrado em ocasiões festivas. Consiste em aves marinhas conhecidas como little auks (Alle alle), colocadas inteiras dentro da pele de uma foca. O preparador introduz dezenas ou até centenas de aves no interior da pele, remove o máximo de ar, sela a abertura com gordura de foca e costura. Depois, o pacote é escondido sob um monte de pedras com um peso por cima. Isso cria um ambiente anaeróbico e frio onde as aves fermentam por meses, até o período de consumo no inverno. A técnica preserva proteínas abundantes no verão para os meses de escassez, além de ter papel identitário entre comunidades inughuit. Ao abrir o kiviak, as aves ficam macias e são consumidas cruas, frequentemente em celebrações familiares. Como toda fermentação tradicional, o método exige experiência. Há registros de risco quando se utilizam espécies inadequadas. Em 2013, por exemplo, um lote produzido com eider, e não com little auk, esteve ligado a casos de botulismo em Siorapaluk, na Groenlândia, fato citado por fontes locais e reforçado por relatos jornalísticos. Hoje, o prato continua a ser um marcador cultural e uma prova da engenhosidade de conservação no Ártico, mas requer preparo cuidadoso e respeito às práticas tradicionais.

Casu marzu, também grafado casu martzu, é um queijo de leite de ovelha da Sardenha que contém larvas vivas da mosca do queijo, Piophila casei. A produção parte de um pecorino relativamente jovem. Abre-se a casca ou fazem-se incisões para que as moscas depositem ovos. As larvas se alimentam da gordura do queijo, promovendo uma fermentação avançada que torna a massa muito macia e libera um líquido conhecido como lágrima. O sabor é intensíssimo e persistente. Por preocupações sanitárias, como o risco teórico de pseudomíase intestinal e a possibilidade de microrganismos oportunistas, a venda comercial do casu marzu é proibida na Itália e, na prática, não se enquadra nos padrões de segurança alimentar da União Europeia para comércio regular. Ainda assim, ele persiste em contextos familiares e informais como um marcador de identidade local. O serviço típico inclui fatias sobre o pão fino pane carasau e taças de vinho cannonau. Um detalhe conhecido do consumo é que as larvas podem saltar quando perturbadas, e por isso alguns cobrem o pão com a mão ao servir. A fama internacional se deve ao exotismo e ao debate sobre segurança. Na ilha, o queijo é parte de um repertório pastoril de longa data.

Surströmming é arenque do Báltico levemente salgado e fermentado, parte da cozinha sueca desde pelo menos o século 16. A produção começa na primavera, quando o arenque do Báltico é capturado antes da desova. Usa-se sal na medida exata para impedir a putrefação e permitir que a fermentação prossiga. O peixe passa por etapas em salmoura e continua a fermentar inclusive dentro da lata, razão pela qual algumas ficam ligeiramente estufadas. A tradição prevê uma estreia anual de consumo na terceira quinta-feira de agosto, e o período mais comum de degustação vai do fim de agosto ao início de setembro. O odor é muito intenso e, por isso, recomenda-se abrir as latas ao ar livre. À mesa, o ritual clássico equilibra potência e acidez: pão fino tunnbröd, batata cozida, cebola e creme azedo costumam acompanhar o peixe. Em regiões do norte, há festivais e encontros dedicados a esse alimento, visto como patrimônio cultural ligado a antigas técnicas de conservação em clima frio e a uma identidade regional específica. Para muitos visitantes, o impacto inicial é o cheiro. Para apreciadores, o foco está na combinação de salinidade, acidez e textura que resulta do processo de fermentação controlada.

Hákarl é tubarão da Groenlândia ou outro sleeper shark submetido a fermentação e secagem, integrante do conjunto de comidas tradicionais de inverno conhecido como þorramatur. O tubarão fresco é impróprio para consumo humano porque contém grandes quantidades de ureia e compostos associados ao TMAO. O processo tradicional neutraliza esse problema. Primeiro, a carne é curada e comprimida por semanas para drenar líquidos. Em seguida, é pendurada para maturar ao ar por quatro a cinco meses, até formar uma crosta externamente, retirada antes do serviço. O resultado são cubos firmes, de aroma marcante com notas de amônia, que costumam ser servidos em pequenas porções, às vezes acompanhados de brennivín, um destilado islandês. O hákarl é amplamente conhecido por visitantes como um desafio, mas, para islandeses, ele representa uma técnica de conservação desenvolvida para sobreviver a invernos rigorosos e a uma geografia com pouca disponibilidade de carne fresca no passado. A tradição pode ser explorada por quem visita a península de Snæfellsnes, onde o Museu do Tubarão apresenta o método e sua história, incluindo o papel da fermentação como etapa crítica para tornar a carne segura.

Balut é um ovo de pato fertilizado, incubado por um período que varia conforme a preferência local, e depois cozido no vapor ou fervido para consumo ainda quente, diretamente da casca. Nas Filipinas, a faixa mais comum de incubação fica entre 14 e 18 dias. Muitos produtores e consumidores consideram 17 dias um ponto ideal, quando já há desenvolvimento embrionário perceptível, porém com ossos ainda macios. Em países vizinhos, como Vietnã e Camboja, existem versões com incubação de 18 a 21 dias, que resultam em embriões mais formados, porém mastigáveis. Vendedor ambulante à noite, o baluteiro oferece o ovo com pitadas de sal, vinagre ou molhos cítricos. A experiência envolve três partes principais. Primeiro, o caldo saboroso no interior da casca. Depois, a gema rica e densa. Por fim, o embrião, cuja textura varia de cremosa a mais firme conforme os dias de incubação. O alimento tem forte presença cultural, econômica e simbólica, sendo tema de estudos acadêmicos que analisam sua cadeia produtiva e debates contemporâneos sobre autenticidade e demanda. Apesar de causar estranhamento a quem vê pela primeira vez, o balut é reconhecido como um ícone da comida de rua filipina e de técnicas tradicionais de incubação e preparo.