“Festim Diabólico” (1948) mudou o paradigma do suspense. Se antes filmes desse gênero eram apenas válvula de escape para as tensões de um mundo cada vez mais instável, o clássico de Alfred Hitchcock (1899-1980) encarnou o propósito de usar o crime para questionar as convenções, a hipocrisia de gente que se odeia, mas que têm de dividir o mesmo espaço, a ira diante do sucesso alheio. Hitchcock sabia equilibrar horror e inteligência como poucos, desafiando a lógica com seus situações tão absurdas quanto reveladoras, nas quais a maldade compõe a natureza humana de maneira indissolúvel, como o reflexo no espelho. “A Mulher na Cabine 10” reúne algumas das ideias do universo hitchcockiano, apostando as fichas mais valiosas numa personagem obscura, cujo passado volta-se contra ela. Junto com os corroteiristas Joe Shrapnel e Anna Waterhouse, Simon Stone adapta o best-seller da romancista britânica Ruth Ware, de 2016, mantendo a aura de isolamento e paranoia que tornam-se mais evidentes na tela.
Laura Blackwood é uma mulher cercada. Jornalista investigativa amplamente conhecida no meio londrino, Lo volta de um período sabático depois de saber da execução cruel de uma mulher que lhe dera uma entrevista acerca do esquema de fraudes numa ONG que assiste crianças pobres. Ela chega com vontade de trabalhar, e então sua editora, Rowan (de uma Gugu Mbatha-Raw miseravelmente desperdiçada) tenta convencê-la a aceitar escrever uma reportagem sobre corrupção na FIFA, mas ela saca uma contraproposta. Richard Bullmer e Anne Lyngstad, bilionários cuja fortuna consolidou-se com a fabricação de navios, organizaram um cruzeiro de três dias até a Noruega a fim de levantar donativos para a fundação contra o câncer que os dois querem criar. Anne está morrendo de leucemia, o que daria ao casal o gancho perfeito para recolher uma bolada. Lo fora convidada a participar, e sua intuição lhe diz que conseguirá uma matéria digna de prêmio. Pano longo.
De cara, vão aparecendo sinais de que a canoa pode estar furada. Depois de uma gafe quanto ao código de etiqueta do iate — a “iatiqueta”, segundo um dos comensais de Richard e Anne —, ela avista Ben Morgan, o fotógrafo vivido por David Ajala, com quem tivera um rompimento traumático que ainda está tentando esquecer. Os dois cumprimentam-se de uma maneira que deixa óbvio que uma recaída não seria nada tão disparatado, e Stone vale-se desse tropo para elaborar respiros cada vez mais necessários entre uma e outra confrontação, todas essas ocasiões em que Keira Knightley demonstra total controle sobre sua personagem. O modo como Knightley vai abrindo o baú de ossos de Lo, aos poucos, sem estardalhaço, dosando medo e coragem é uma das maiores qualidades do longa, a ponto de definir o andamento da história e conferir a devida importância a certas figuras que ficariam perdidas em mãos inábeis.
Quando afinal se consuma o mistério central da narrativa, ligado à tal cabine 10 do título, ninguém é capaz de afirmar nada. Lo vai circulando por todos os núcleos de tipos numerosos, com destaque para a atuação de Guy Pearce na pele do anfitrião, cínico na medida exata. Parece fácil imprimir glamour a um covil de ricaços prepotentes e cheios de terceiras intenções, mas não é, não.
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