Alguns cineastas possuem algo especial. Algo que os torna únicos, inconfundíveis e autênticos. O dinamarquês Nicolas Winding Refn é um deles, e a prova disso é que seu longa-metragem de estreia, “Pusher”, é um começo e tanto para uma carreira cheia de destaques. Baseado em um curta que ele havia realizado anteriormente, “Pusher” foi rodado com uma câmera na mão e um orçamento apertado. O enredo gira em torno de Frank (Kim Bodnia), um traficante em Copenhague que precisa pagar uma dívida a um chefe do narcotráfico. O filme acompanha seus passos ao longo de uma semana, em que a cada dia seu prazo se encurta, a violência é crescente e o perigo iminente.
Gravado com câmeras pequenas, para que pudessem ser movimentadas com facilidade pelo operador, além de ser autofinanciado, o longa captura, em ordem cronológica e com um realismo visceral e cru, os apuros de Frank enquanto tenta encontrar uma saída para seu problema, mas acaba enrolado em mais confusão. O espectador acompanha tudo como se estivesse cara a cara com os personagens, com um nervosismo progressivo e uma tensão inesgotável, que se torna insuportável à medida que o cronômetro de Frank aperta.
O protagonista de Bodnia não é um sujeito carismático. Não é boa pessoa, nem ingênuo. Não há nele nenhuma qualidade que faça o espectador se apegar a ele. Por outro lado, ele maltrata a stripper com quem tem um caso, espanca seu único amigo e cria problemas por onde passa. Talvez seja esse compromisso com a naturalidade e com a contradição de um ser humano cheio de defeitos que nos coloque ali, na pele dele. Se ele não é nenhum herói, se não é provido de ética ou moral, o que sobra em Frank é seu cinismo. E sua coragem nasce desse desespero por sobreviver, em que é tudo ou nada. Todas as suas ações são reativas e, na maioria das vezes, burras, o que deixa sua situação cada vez mais dramática.
É o vilão Milo (Zlatko Burić) que é carismático, amigável, quase sereno (não fosse Frank para tirá-lo do sério). Sua presença é, ao mesmo tempo, admirável e intimidadora. Sabemos que ele é capaz do pior, mas não é isso que demonstra. Talvez sua simpatia seja um motor de esperança do espectador para que Frank se livre da ameaça, mas sabemos que é impossível que ele viva sem pagar sua dívida, que só aumenta conforme os dias correm.
A estética de “Pusher” é quase documental. Repara a frieza e a brutalidade urbana, o concreto desgastado, e é possível sentir, através da tela, o fedor do esgoto nas ruas periféricas. Diferente de outras obras que vieram depois, a fotografia de “Pusher” não é estilizada: os neons não estão presentes e ainda não há composições simbólicas. O que vence aqui é o naturalismo cru, os enquadramentos claustrofóbicos e o backlighting. O ritmo é frenético, ao contrário das produções mais recentes, mais arrastadas, que valorizam metáforas visuais. Uma característica dessa obra de estreia é a valorização da masculinidade, da rebeldia e da violência: claro que tudo isso em tom crítico.
A trilha sonora pontua, mas não ornamenta o filme. Há uma tendência de se escutarem mais sons ambientes, ruídos urbanos, respirações nervosas. Parte disso, claro, por causa do orçamento curto. Apesar das limitações, a obra causou tamanho impacto na época de seu lançamento que ganhou sequências, ditou modas, inspirou remakes e colocou Refn no circuito mundial, além de atrair os olhos do mundo para o cinema dinamarquês. Ainda revelou Mads Mikkelsen, no papel de Tonny (melhor amigo de Frank), para um público global e para obras internacionais.
★★★★★★★★★★