O filme que chocou Hollywood está na Netflix — um dos suspenses mais brilhantes de todos os tempos Divulgação / Paramount Pictures

O filme que chocou Hollywood está na Netflix — um dos suspenses mais brilhantes de todos os tempos

O conflito central opõe a obrigação de apurar fatos à necessidade de triunfar num julgamento que vale prestígio, porque a arena pública contamina procedimentos de investigação e táticas de acusação e defesa. Em “As Duas Faces de um Crime”, Gregory Hoblit dirige um processo no qual um advogado carismático, vivido por Richard Gere, aceita defender um jovem corista assustado, interpretado por Edward Norton, enquanto uma promotora determinada, papel de Laura Linney, conduz a acusação sob holofotes e cálculos políticos. O caso corre diante de uma juíza firme, Alfre Woodard, e recebe leituras clínicas de uma especialista forense interpretada por Frances McDormand. A partir desse arranjo, o filme delimita objetivos claros e incompatíveis, e cada decisão desloca o foco, altera o tempo dramático e redefine as alianças em jogo.

O objetivo do defensor é absolver o cliente e reforçar sua imagem pública porque enxerga brechas na coleta de provas e sabe aproveitar entrevistas e manchetes. Por isso, ele provoca a promotoria, pede exclusão de evidências frágeis e pressiona testemunhas, já que cada contradição pode induzir prudência no júri. A consequência direta é elevar o risco do processo, pois a exposição cria expectativas e desperta resistências que voltam ao tribunal como tentativas de descredibilização. Do outro lado, a promotora precisa sustentar um encadeamento causal contínuo, porque a corte exige coerência e o eleitorado cobra firmeza. Quando a imprensa destaca inconsistências, ela endurece negociações, reforça perícias e recusa acordos que diluiriam a narrativa do Estado. Assim, os dois lados ajustam objetivos conforme cada choque processual altera equilíbrio e urgência.

O acusado entra como figura sobre a qual todos projetam interesses. Seu desejo imediato é escapar de uma pena exemplar, enquanto as primeiras informações o vinculam à cena do crime por proximidade e circunstância. Quando a defesa traz histórico de trauma e comportamentos dissociativos, o eixo do debate se desloca, porque a responsabilidade penal passa a depender da avaliação sobre consciência e intenção. A psiquiatria forense, então, ganha centralidade: as entrevistas da especialista interpretada por Frances McDormand reorganizam o ponto de vista, já que a escuta clínica reclassifica respostas do réu e muda a leitura de hesitações e silêncios. Esse movimento altera o ritmo, porque a investigação deixa de ser apenas documental e incorpora análise comportamental que influencia admissibilidade de provas e tipo de veredito buscado.

A condução de Hoblit explora como a encenação pode transferir foco e informação. Planos fechados no rosto do réu durante perguntas sensíveis comprimem o tempo, sugerem conflitos internos e, por isso, orientam a plateia a observar microgestos que mudam o sentido de falas aparentemente simples. Em contrapartida, enquadramentos mais abertos nas intervenções da juíza reconstroem a hierarquia institucional, quando ela interrompe arroubos e redireciona o procedimento. A trilha aparece de maneira precisa nos momentos em que a pressão sobre o acusado cresce, o que intensifica a percepção de risco sem tomar o lugar das palavras. Esses recursos não servem a enfeites; eles movem a informação e ajustam a leitura do conflito.

Os diálogos funcionam como golpes táticos. Quando o advogado, diante do júri, pressiona uma testemunha a ordenar cronologias que não fecham, a dúvida jurídica ganha força e desloca o objetivo imediato da promotoria, obrigada a reforçar materialidade e intenção. Em resposta, a acusação reconstrói a sequência dos fatos, enfatiza ligações entre objetos, horários e deslocamentos e, assim, recupera verossimilhança. Cada pergunta altera chances, porque obriga os personagens a reverem prioridades. A defesa percebe que a melhor rota passa por consolidar a hipótese clínica; a promotoria entende que precisa provar que o réu compreendia a gravidade de seus atos. O tempo dramático acelera quando uma perícia ameaça invalidar o sentido de depoimentos anteriores e, por isso, empurra a juíza a definir limites do que entra ou sai do julgamento.

A principal virada acontece em audiência, quando um acontecimento inesperado força a corte a considerar oficialmente a condição mental do réu. Esse instante muda a meta do advogado, que passa a buscar reconhecimento formal dessa condição, ao mesmo tempo em que obriga a promotora a impedir que a dúvida vire absolvição ampla. A consequência imediata é uma corrida por documentos, laudos e reconstituições que, apresentados em sequência, reconfiguram o tabuleiro. O defensor, até então senhor do espetáculo, percebe que seus lances midiáticos têm custo moral, porque a versão mais conveniente pode não coincidir com a verdade que o processo deveria alcançar. A promotora mede o preço de ceder, já que um acordo inadequado comprometeria não apenas o caso, mas sua autoridade diante de superiores.

O ponto culminante concentra risco, escolha e consequência quando a defesa confronta o próprio cliente longe do ritual do plenário e precisa decidir que narrativa sustentará diante do júri. A conversa resulta de pistas reunidas ao longo da investigação e altera o vínculo entre os dois, porque define se a lealdade profissional suporta a suspeita que se desenha. A decisão tomada nesse instante afeta imediatamente a estratégia em sala de audiência e prepara a resolução, sem revelar o desfecho, preservando a pergunta moral que o filme ergue desde o início.

As atuações deslocam sentidos com precisão. Richard Gere investe em charme calculado e timing agressivo, o que muda a temperatura das sessões sempre que ele encontra uma fresta argumentativa. Laura Linney projeta controle e tensão sob vigilância política, o que reposiciona o foco quando a acusação parece vacilar e precisa reafirmar autoridade sem perder medida. Edward Norton alterna fragilidade e opacidade, e essa oscilação dá nova leitura a cada resposta, porque transforma o que parecia um simples medo em possível estratégia de sobrevivência. Alfre Woodard impõe limites com firmeza, garantindo que o procedimento retorne aos trilhos sempre que alguém tenta ampliar demais a cena. Frances McDormand trabalha com atenção serena e escuta analítica; suas conclusões mudam o caminho do caso, porque introduzem critérios que repercutem em perguntas, laudos e decisões da corte.

A estrutura do filme avança de apresentação direta dos agentes e do crime para um desenvolvimento espiralado que combina política, espetacularização e psicologia, até alcançar uma resolução que mantém viva a questão ética. Quando comparado a “Tempo de Matar”, o longa de Hoblit adota escolha inversa: não depende do gesto inflamado que unifica a plateia, mas de dúvidas que exigem cuidado com a palavra e com a prova. Essa diferença explica por que os personagens pagam preços íntimos pelas estratégias adotadas, já que cada vitória retórica pressiona a consciência e altera relações fora do tribunal.

Quando a magistratura encerra os trabalhos, o rastro que permanece recai sobre quem usou a lei como exibição de talento e sobre quem sustentou uma acusação sob tempestade constante. O filme mostra que reputações crescem, mas responsabilidades também, porque decisões tomadas em busca de triunfo deixam marcas que ultrapassam a sentença. “As Duas Faces de um Crime” preserva a tensão e confirma que ouvir, interpretar e decidir cobram coragem, enquanto a verdade, submetida a interesses e aplausos, exige disciplina para não se perder no barulho da fama.

Filme: As Duas Faces de um Crime
Diretor: Gregory Hoblit
Ano: 1996
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★