Emily Dickinson passou quase toda a vida entre os limites de uma casa em Amherst, mas o rumor de suas leituras nunca se restringiu às paredes brancas do quarto. Há quem diga que ela se alimentava apenas de Bíblia, Shakespeare e sermões locais. Mas há uma camada subterrânea, menos visível, que sustenta outro retrato: a jovem que encontrou, entre as prateleiras da família ou nas mãos de amigas discretas, quatro romances que mudaram sua relação com o mundo. É curioso pensar nesse deslocamento silencioso: uma moça que raramente saía de casa, mas atravessava continentes ao se debruçar sobre “O Morro dos Ventos Uivantes”, em 1849, escondendo o livro sob a colcha quando a irmã se aproximava; ou que lia “A Letra Escarlate”, recém-publicado em Boston, e reconhecia ali a dureza puritana da própria vizinhança. Há também a noite em que recebeu de contrabando “Jane Eyre”, passada de mão em mão entre colegas, e demorou meses até devolvê-lo, já marcado por exclamações na margem. E, mais tarde, o inverno em que encontrou “Frankenstein, ou o Moderno Prometeu” na coleção inglesa do irmão Austin, consumindo suas páginas em três dias febris. Não se trata de curiosidade bibliográfica: é o rastro de um diálogo íntimo que nunca foi registrado em carta ou diário, mas que sobrevive na maneira como sua poesia lida com paixão, isolamento, resistência e criação. De certo modo, esses livros funcionaram como companheiros clandestinos, revelando-lhe que a literatura podia dizer o indizível sem precisar expor quem o dizia. O que permanece é a imagem da poeta voltando a páginas riscadas, interrompendo a leitura quando os passos ecoavam no corredor, e retomando-a em silêncio, como quem sabe que há coisas que não se compartilham. Talvez aí esteja a medida de sua modernidade: não a escolha de viver reclusa, mas a convicção de que a leitura secreta podia ser uma forma de liberdade.

Em Boston, 1850, saiu “A Letra Escarlate” e, semanas depois, um exemplar alcançou a biblioteca de Edward Dickinson. Emily foi a primeira a abri-lo. Leu em silêncio e guardou na escrivaninha do quarto, voltando a trechos que a feriam com uma lucidez nova. Em Hester Prynne reconheceu o retrato, não da transgressão, mas do peso social que exige penitência pública para feridas privadas. Aquela letra vermelha convertia o julgamento em espetáculo; a jovem leitora, porém, percebia ali uma energia que recusava a submissão. O romance de Hawthorne não era apenas história moral: era código, cifra, convite à coragem discreta. Amherst podia continuar puritana; Emily, entre páginas e respirações contidas, aprendia que a dignidade pode sobreviver à vergonha imposta. A leitura foi meticulosa: marcações curtas, dobras econômicas, retorno aos diálogos em que a fé fere e consola. Nada foi comentado no salão da casa; tudo ficou gravado no regime secreto de uma consciência que escolhe o recolhimento como forma de resistência. Quando fechou “A Letra Escarlate”, não encerrou um enredo: assentou um princípio. A palavra, afinada contra o ruído do mundo, podia sustentar uma vida inteira. E, se o século exigia exemplos edificantes, Emily aceitou outro percurso — o da integridade silenciosa, que aprende, com Hester, a caminhar sob o olhar dos outros sem se entregar a ele.

Em 1852, afastada de Mount Holyoke, Emily Dickinson recebeu de uma colega um exemplar americano de “Jane Eyre”. O romance circulava discretamente entre moças que buscavam algo além do currículo piedoso. Emily lia cada capítulo antes da oração noturna e anotava exclamações mínimas nas margens. O volume permaneceu com ela por meses, como contrabando lícito, até a devolução tardia. Na trajetória da governanta órfã, encontrou um modo de afirmar a própria voz sem romper o fio da consciência. A narrativa de Charlotte Brontë oferecia mais que romance: era método de autonomia, escola da dignidade. A protagonista não se rende, negocia; não brada, sustenta; não cede, escolhe a hora. Essa ética do íntimo — firme, antiespetacular — ajustou-se ao temperamento de Amherst. Leu-se “Jane Eyre” como quem aprende respiração: cadência, pausa, retomada. Ao concluir, Emily não buscou confidências; incorporou o livro à rotina de silêncio laborioso em que a palavra, para valer, precisa primeiro ser provada. Assim, a leitura tornou-se uma espécie de pacto: manter a solidão não como renúncia, mas como campo de decisão. No rumor das cartas que nunca nomeiam o que importava, a lição persistiu. E, cada vez que dobrava uma página, a jovem poeta renovava a convicção de que a liberdade, antes de ser um gesto público, nasce de um juízo íntimo intransferível.

Em 1849, um professor do Amherst College trouxe da Inglaterra um exemplar recém-importado de “O Morro dos Ventos Uivantes”. Emily Dickinson, então com dezenove anos, recebeu o volume como quem segura um segredo. Lia à luz de vela e fechava as páginas sempre que alguém se aproximava. O romance de Emily Brontë, saturado de tempestade afetiva e paisagens indomadas, oferecia à jovem reclusa a experiência de um mundo impossível em Amherst. Heathcliff e Catherine surgiam como projeções de forças interiores que não encontrariam voz no puritanismo local. A leitura foi menos um entretenimento que uma revelação: a literatura podia exibir, sem véus, os abismos do desejo e da vingança. Ao esconder o exemplar sob a colcha, Emily não apenas ocultava um livro; protegia um diálogo consigo mesma, um incêndio contido. Aquelas páginas tornaram-se confissão indireta, espelho incendiado, cuja brasa, ignorada no cotidiano da casa, transmutou-se em rigor poético. Ninguém soube do fervor noturno, das anotações mínimas nas margens, do retorno insistente a certas passagens. Ficou, porém, a certeza íntima de que a imaginação pode ser mais vasta que qualquer paisagem vista da janela, e que a solidão, longe de silêncio, é um território onde o amor e a fúria aprendem a falar baixo.

No inverno de 1855, Austin Dickinson trouxe para Amherst uma coleção de romances ingleses que incluía “Frankenstein, ou o Moderno Prometeu”. Emily retirou o volume da estante e leu em três dias febris. Não encontrou ali um espetáculo de horror, mas o retrato lancinante da solidão: uma criatura feita de linguagem e rejeição, condenada a procurar sentido onde não há acolhimento. Cada página, para Emily, parecia mais verdadeira que qualquer sermão. A criação que abandona a obra, o filho que não encontra rosto no mundo, o apelo por escuta — tudo convergia para uma ideia que a futura poeta reconheceu como sua: criar é responder a um chamado que isola. Mary Shelley lhe ofereceu o mapa de um desamparo ativo, no qual a busca não termina, mas se esclarece. Ao fechar o livro, Emily mantinha a mão entre as páginas, como quem impede que a criatura permaneça totalmente do lado de fora. Releu passagens, sublinhou uma frase, devolveu “Frankenstein, ou o Moderno Prometeu” à prateleira — e guardou o essencial consigo. Dali em diante, escrever seria aceitar a tarefa de soprar vida em algo que, tão pronto existe, deixa de lhe pertencer. A solidão deixou de ser ausência: converteu-se em oficina. E o quarto de Amherst tornou-se laboratório onde o invisível, enfim, respirava.