Paul Thomas Anderson parece ter um fascínio qualquer por histórias delirantes, inverossímeis, farsescas, não raro patéticas, que chegam aos olhos e ao coração de muita gente sob a forma de verdades imperscrutáveis até o momento em que tudo começa a desenhar-se de forma bem mais concreta do que se poderia supor. “Vício Inerente”, sua adaptação para o romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009, junta uma comédia sobre drogas a um labirinto de mistério, lembrando produções televisivas de meio século atrás. Anderson parece a todo custo querer distância do convencional, preferindo esmerilhar o noir em seus mais diferentes tons, chegando a uma narrativa fragmentada de propósito e cuja necessária extravagância desconcerta. A história se passa na Califórnia dos anos 1970, e Larry “Doc” Sportello, um detetive particular hippie, precisa descobrir o paradeiro de um famoso magnata do setor imobiliário. À medida que o filme ganha corpo, Doc se depara com policiais corruptos, empresários inescrupulosos, drogados, militantes políticos radicais e personagens outros que fazem o público imaginar-se no meio de um surto coletivo. Pynchon na veia.
A expressão “vício inerente” é uma referência à qualidade natural de determinados produtos, sempre suscetíveis a danos, a despeito de fatores externos. Assim são os personagens do filme, liderados por Doc, maconheiro convicto, no meio de uma trama complexa envolvendo o sumiço de Mickey Wolfmann, um magnata do setor imobiliário. Anderson abusa de elementos visuais e técnicos a exemplo da fotografia de Robert Elswit e da edição de Leslie Jones para situar o espectador na aura feérica da Califórnia dos 1970, e de imediato vem à lembrança “Medo e Delírio em Las Vegas” (1971), o épico gonzo de Hunter S. Thompson (1937-2005). “Vício Inerente” está em algum ponto entre o rompimento traumático da contracultura e o princípio de uma nova ordem, de austeridade e pragmatismo, sem lugar para o sonho, tanto menos para alucinações de natureza química ou de qualquer outro gênero. Observar Doc — cujo epíteto alude, claro, ao bordão original do Pernalonga, mas de forma oblíqua também a Danny, o filho de Jack Nicholson e Shelley Duvall (1949-2024) em “O Iluminado” (1980), a obra-prima do terror psicológico de Stanley Kubrick (1928-1999) — é viajar no tempo. Seu cabelo permanentemente desgrenhado, as costeletas grossas e as camisas de estampas chamativas escondem um pacifista que não foge à luta e resolve seus casos socorrendo-se muita vez de sua intuição. E e o que pretende fazer quanto a Wolfmann.
Na abertura, Doc é procurado por Shasta Fay Hepworth, a ex-namorada que agora está com Wolfmann. Ela quer que Doc detenha a esposa do ricaço, empenhada em trancafiá-lo num hospício. Sim, ele tem muitos parafusos frouxos, mas por trás do propósito há a montanha de dinheiro em que muita gente está de olho, inclusive Shasta. Na mesma semana, Tariq Khalil, um amigo ex-presidiário, quer a ajuda de Doc para reaver uma bolada que havia emprestado a Glen Charlock, um colega de cárcere, supremacista branco, e como isso se não bastasse, ele é solicitado a localizar Coy Harlingen, um saxofonista de jazz, em retribuição a um favor da mulher dele, Hope. O andamento caótico da narrativa, intencional, pende ora para o humor nonsense, ora para o tragicômico, ainda sobrando margem para o suspense, e como um Coringa psicodélico Joaquin Phoenix coordena a ação como se também fôssemos velhos chapas de Doc. As cenas com Katherine Waterston e as participações especiais de Owen Wilson, Michael Kenneth Williams e Jeannie Berlin, impagável na pele de uma tia malandra do protagonista, deságuam na possível solução do mistério, momento em que desembarcam outros tipos que parecem ter se materializado das páginas de Thompson.
A sequência no consultório de Rudy Blatnoyd, o dentista viciado em cocaína interpretado por Martin Short, é decerto uma das mais engraçadas do cinema, e quando Doc passa a manter encontros cada vez mais frequentes (e comprometedores) com Christian “Bigfoot” Bjornsen, um policial de direita que odeia hippies, casado com uma megera ainda mais colérica que ele, o longa começa a mostrar a que veio. O desaparecimento de Wolfmann, de
Eric Roberts, é uma metáfora para a erosão do mundo como costumava ser conhecido, e a figura de Bigfoot, uma espécie de Reagan anabolizado, o atesta sem chance de refutação. Num de seus melhores trabalhos, Josh Brolin rouba a cena como o anti-Doc, o exterminador de ideais, e “Vício Inerente” continua mais atual do que jamais fora. Para os que o entendem.
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