O surrealismo no cinema nunca se limitou às distorções imagéticas e lógicas. Os filmes do gênero sempre foram mais uma espécie de convite para questionar a própria percepção da realidade. A Revista Bula selecionou algumas produções na Netflix que não te oferecem respostas. Pelo contrário, te deixam com a cabeça latejando, cheia de perguntas, desconfiando de tudo que viu e ouviu. A estética surrealista é uma arma poderosa para revelar as fragilidades da mente, a fluidez do tempo e os abismos entre consciente e inconsciente.
Se Salvador Dalí estivesse vivo hoje e fosse um espectador dos streamings, certamente encontraria alguns títulos que despertariam seu interesse. Imagine ele sendo arrancado de sua própria contemplação para mergulhar nos delírios visuais de outros artistas? A Netflix reúne narrativas que misturam teatro, pintura, filosofia e alucinações da mente. O cinema não precisa seguir a linha reta do racionalismo ou do realismo para alcançar profundidade.
Aqui, a instabilidade é a regra. A coerência é uma ilusão passageira. As fronteiras entre a vida, a arte e o delírio se dissolvem, transformando cada sequência em uma tela em movimento. Esses filmes são fascinantes, mas é sua capacidade em encontrar equilíbrio na forma, conteúdo e narrativa que trazem reflexões sobre identidade, criAção, memória e sociedade. Cada um, à sua maneira, é uma capsula de questionamentos. Não vale apenas assistir, é preciso experimentar e suportar o desconforto que provocam.

Um cineasta premiado retorna ao México após anos vivendo nos Estados Unidos e se vê envolto em uma espiral de memórias, sonhos e fantasias que desafiam qualquer lógica linear. Ele revisita sua trajetória, confrontando relações familiares, dilemas políticos e a própria sensação de deslocamento cultural. As imagens, ora absurdas, ora poéticas, transformam cada lembrança em espetáculo, enquanto a fronteira entre vida íntima e invenção artística desmorona. O passado surge distorcido, o presente parece frágil e o futuro incerto. A jornada, mais do que sobre conquistas, revela-se uma busca por pertencimento em um mundo que insiste em tratá-lo como estrangeiro em todos os lugares.

Uma jovem viaja com o namorado para conhecer seus pais em uma fazenda isolada, enquanto pensamentos de terminar o relacionamento a assombram. Durante a visita, o tempo parece se distorcer: os pais envelhecem e rejuvenescem em instantes, diálogos se fragmentam e a percepção da jovem se torna cada vez mais instável. O que começa como um encontro desconfortável se transforma em uma espiral de delírios, na qual identidade, memória e imaginação se confundem. O espaço doméstico revela-se labirinto psicológico, e o que parecia ser uma viagem trivial acaba se mostrando uma experiência existencial, onde o amor, a solidão e o sentido da vida colidem.

Um crítico de arte implacável descobre obras desconhecidas de um artista falecido e as leva ao mercado, transformando-as em sensação imediata. No entanto, os quadros parecem carregar uma força obscura: aqueles que se aproveitam de seu valor comercial começam a sofrer consequências sobrenaturais e fatais. Galeristas, colecionadores e artistas envolvidos são confrontados por visões e acontecimentos inexplicáveis, como se a arte tivesse ganhado vida própria para se vingar da exploração mercadológica. Entre a sátira do mundo das artes e o terror psicológico, a história revela a tensão entre criação genuína e ambição vazia, onde até a beleza se torna ameaça mortal.

Um ator em declínio, conhecido mundialmente por ter interpretado um super-herói, tenta recuperar prestígio ao montar uma peça ambiciosa na Broadway. Enquanto lida com egos inflados, problemas financeiros e relações familiares desgastadas, ele enfrenta também a própria mente, que insiste em lembrá-lo do personagem que o consagrou. Entre ensaios tensos e noites insone, sua identidade começa a se fragmentar: é um artista genuíno em busca de relevância ou apenas uma sombra do passado tentando se agarrar ao pouco que resta de fama? A fronteira entre realidade e delírio vai se dissolvendo até que sua própria percepção de si e do mundo se torna impossível de decifrar.