Num mundo degenerado, vítima de uma incessante contaminação por pensamentos teratológicos de todas as categorias, de valores apodrecidos pela influência maléfica de quem deveria dar o exemplo, ainda cabe falar-se em moralidade, decoro, decência, ou isso é, agora mais do que nunca, coisa para sonhadores, ingênuos, palermas? Essa é uma das perguntas que Benjamin Caron levanta em “A Noite Sempre Chega”, um neo-noir com muito da estética do gênero que pega o espectador pelo contrapé. Caron inspira-se em alguns dos excelentes trabalhos de Quentin Tarantino, David Fincher, James Foley e Martin Scorsese, mas trata de imprimir personalidade a seu longa por meio de uma anti-heroína que luta com todas as suas forças para escapar da perdição, mas que também só precisa do motivo mais banal para jogar-se com tudo na cova dos leões. Adaptado do livro homônimo lançado pelo escritor e músico Willy Vlautin em 2021, o roteiro de Sarah Conradt concentra em Lynette, a personagem central interpretada por Vanessa Kirby, reflexões sobre vulnerabilidade social, violência, desagregação familiar e o pouco caso das autoridades, tecendo uma história que foge ao óbvio.
Lynette, a mãe, Doreen, e Kenny, o irmão mais velho, moram numa casa sucateada às margens de uma rodovia em Portland, mas esse está longe de ser o problema. Há algum tempo ela vem tentando quitar os cinquenta mil dólares da hipoteca do imóvel, mas sempre acontece alguma emergência e o dinheiro some. Ela consegue, afinal, juntar a metade da quantia, esperando que Doreen compareça com a outra parte do montante, sem saber que a mãe gastara seus 25 mil na entrada de um carro zero. O constrangimento de ter ido até a imobiliária apenas para ver o negócio escapar-lhe pelos dedos é a tônica durante os 108 minutos, com Lynette pulando do emprego formal numa empresa de panificação para as mesas coalhadas de gente de um inferninho, esmerando-se por levar uma vida menos ordinária. Ela disfarça o quanto pode a frustração e a tristeza, mantendo encontros furtivos com homens casados para arrecadar alguns tostões a mais. Quando vai ao saguão do hotel onde Scott está hospedado, já se abateu sobre ela a tragédia do despejo iminente. Ocorre-lhe uma ideia louca para recuperar a chance de negociar a posse da casa depois que o cliente eventual a dispensa, e então se inicia uma corrida frenética, em que Lynette percorre todos os buracos da cidade a fim de realizar seu sonho insano.
Ela pega a chave da Mercedes-Benz que Scott esquecera na cabeceira da cama e sai com o carro sem muita ideia do que fazer, até que se lembra que Gloria, uma garota com quem tinha o hábito de dividir programas com empresários ricos, deve-lhe três mil dólares. Lynette aparece de surpresa no apartamento da amiga, que mantém um cofre, de onde tira apenas um sexto da dívida. Como trata-se de um filme, Gloria sai e deixa que a outra fique, e claro que Lynette tenta abrir aquela arca de aço e mantas de aramida. Como não consegue, vai-se embora, outra vez sem rumo, até avistar Cody, um colega com quem trabalha nas horas vagas, se dirigindo para o ponto de ônibus. Lynette sabe que ele já esteve na cadeia e intui que o rapaz saiba arrombar cofres, e então “A Noite Sempre Chega” mergulha na escuridão que promete desde os primeiros movimentos, realçada pela fotografia de Damián García. Lynette e Cody seguem para a periferia, onde mora um sujeito conhecido dele experimentado em serviços sujos e quando vê o que havia dentro do cofre do namorado de Gloria, sabe que aquilo não pode acabar bem. Vanessa Kirby e Stephan James protagonizam os melhores lances do enredo, marcado pela tensão e por detalhes que exigem do público toda a atenção, especialmente depois que Kenny passa a acompanhar a irmã caçula. Zack Gottsagen, uma pessoa com síndrome de Down, confere uma bem-vinda dose de pueril inocência em meio à degradação moral de Lynette e Cody, materializada em imagens retratando o baixo meretrício e o narcotráfico. Os expedientes a que Caron recorre para sustentar a redenção de sua anti-heroína, seguida de uma bela passagem levada por Lynette e a mãe, interpretada com vigor por Jennifer Jason Leigh, vêm como o sol, ansioso por brilhar ao cabo de uma longa madrugada diabólica.
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