Esta homenagem reúne cinco poemas e um propósito claro: oferecer, hoje, um modo de escutar o pai que existe em cada cotidiano. Não o pai ideal, mas o possível: o que se equivocou, o que acertou, o que permaneceu. A poesia, aqui, funciona como carpintaria afetiva; enquadra a memória, alisa cantos, devolve brilho onde a pressa havia gasto. Ao leitor, cabe deter o passo e aceitar o gesto antigo de sentar à mesa.
Os nomes passam de leve, com Drummond, Ferreira Gullar, Adélia Prado, José Luís Peixoto e Mia Couto, apenas sinais de caminho. Importa menos a assinatura e mais o que cada verso dispõe sobre a mesa: um recibo guardado, a cor improvável de uma parede, um lugar vazio que insiste em contar, uma varanda que ainda sabe o trajeto dos passos. A poesia não resolve; organiza a vertigem, dá forma a um rumor que persistia em segundo plano e, por minutos, o torna legível.
Ler, neste dia, é um gesto público e íntimo. Público porque reconhece que a paternidade atravessa gerações e fronteiras; íntimo porque só acontece de verdade quando a frase encontra o corpo de quem lê. Nas poucas linhas de um poema, cabem os anos que não couberam nas conversas: pedidos de desculpa, pequenas graças, teimosias de afeto. Cabem, sobretudo, os intervalos, esses lugares onde a linguagem encosta na vida e a vida responde.
Se a data pede flor, que seja de papel bem escolhido. Se pede presença, que seja esta: cinco poemas lidos com vagar, como quem segura uma fotografia até que a imagem aqueça. O resto, a poesia faz sozinha. Dá ao pai um lugar legível, guardado sem solenidade; ao leitor, oferece um modo justo de dizer estou aqui: em voz baixa, preciso, duradouro.
MEU PAI
Ferreira Gullar
meu pai foi ao Rio
se tratar de um câncer
(que o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele examinou
o estojo com o nome
da loja, dobrou a nota,
guardou-a no bolso
e falou: quero ver agora
qual é o sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
DISTINÇÃO
Carlos Drummond de Andrade
O Pai se escreve sempre
com P grande, em letras
de respeito e de tremor,
se é Pai da gente.
E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso.
A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo
bem melhor: Mãe é
muito mais fácil
de enganar.
(Razão, eu sei,
de mais aberto amor.)
IMPRESSIONISTA
Adélia Prado
Uma ocasião, meu pai
pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos
numa casa, como ele mesmo
dizia, constantemente
amanhecendo.
NA HORA DE PÔR A MESA, ÉRAMOS CINCO
José Luís Peixoto
na hora de pôr a mesa,
éramos cinco: o meu pai,
a minha mãe, as minhas
irmãs e eu. depois,
a minha irmã mais velha
casou-se. depois,
a minha irmã mais nova
casou-se. depois,
o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa,
somos cinco, menos
a minha irmã mais velha
que está na casa dela,
menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela,
menos o meu pai, menos
a minha mãe viúva.
cada um deles é um lugar
vazio nesta mesa
onde como sozinho.
mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa,
seremos sempre cinco.
enquanto um de nós
estiver vivo, seremos
sempre cinco.
O HABITANTE
Mia Couto
Se partiste, não sei.
Porque estás, tanto quanto
sempre estiveste. Essa tua,
tão nossa, presença enche
de sombra a casa como
se criasse, dentro de nós,
uma outra casa.
No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.
Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo
de morrer como se nos
estivesses ensinando
um outro modo de viver.
Se o passo é tão celeste
a viagem não conta senão
pelo poema que nos veste.
Os lugares que buscaste
não têm geografia.
São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa
da eternidade.
Moras dentro,
sem deus nem adeus.