Decerto o mundo seria uma sucessão de ambientes irrespiráveis se não fossem as diversas manifestações artísticas que o homem, malgrado envolto na hediondez tamanha da própria natureza, conseguiu materializar. É difícil saber o que seria do mundo sem a delicadeza da arte e, principalmente, sem a beleza de sua iluminação nos tempos mais sombrios da história da humanidade. O britânico Roger Scruton (1944-2020), reconhecia, por óbvio, a importância da violência das máquinas para o desenvolvimento do homem, para que pudesse vencer o desafio da miséria e da fome no rescaldo de tempos de privação e morte, a exemplo do que constatou nos primeiros anos de finda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Jimmy Erskine, o protagonista de “O Crítico”, sabe que despendemos muito tempo esmerando-nos por escapar à banalidade, uma batalha perdida que insistimos em travar com os fantasmas menos óbvios que habitam nossas profundezas mais inacessíveis. Anand Tucker ilumina a personalidade lúgubre de um homem sofisticado e poderoso, prestes a experimentar a grande debacle de sua vida, e o roteiro de Patrick Marber, baseado em “Curtain Call” (“chamada ao palco”, e tradução livre; 2015), o romance de Anthony Quinn, um homônimo do ator, desdobra-se em nuanças múltiplas de vício de uma figura tão sorrateira quanto ardilosa.
Com doze palavras do meio milhão a que recorre todos os anos, Erskine levanta ou enterra a carreira de qualquer ator. Ele já não sabe mais fazer seu trabalho, assistir às estreias de espetáculos teatrais na Londres dos anos 1930, sem rechear seus artigos com ofensas pessoais, mas essa fórmula começa a se esgotar, desestimulada pela nova direção do “Daily Chronicle”, o jornal com que colabora há quatro décadas, prestes a ser incorporado pelo “Daily News” e se tornar o “News Chronicle”. No primeiro dia de “O Diabo Branco” (1612), de John Webster (1580-1634), o celebrado autor de “A Duquesa de Malfi” (1614), Erskine senta-se numa cadeira mais ao fundo da sala, junto com Tom Turner, seu secretário e amante clandestino, e concentra-se na atuação de Nina Land, uma atriz nem tão jovem e ainda por desenvolver a plenitude de seu talento. Tucker é hábil em mesclar lances de maior tensão com momentos descontraídos, mesmo aqueles levados pelo rigoroso exegeta, e Ian McKellen mostra que continua a ter muita bala no tambor. O veterano sai-se bem tanto nas passagens de maior refinamento estético como nas cenas em que Erskine se lança a passeios noturnos no Regent’s Park à cata de jovens da classe operária que complementam a renda em troca de sexo pago e brutal com senhores como ele. É esse, inclusive, o argumento de que o diretor se vale para ir destrinchando o conflito principal do enredo, uma ligação perigosa entre o personagem-título e a atriz em busca de reconhecimento e sucesso.
Nina apresenta uma evolução desde “A Torre Negra” (1933), de George S. Kaufman (1889-1961) e Alexander Woollcott (1887-1943), o primeiro texto a que Tucker faz referência, mas muito longe do que Erskine considera o ideal. Ao ler a crítica sobre “O Diabo Branco”, ela vai atrás do homem que definiu seu trabalho como uma “meia encharcada e fétida” e, por acaso, os dois terminam discutindo num jardim do parque onde Erskine realiza suas fantasias impublicáveis numa Inglaterra que faz do puritanismo a lei e a “inversão sexual” dá cadeia. Uma manobra criativa faz com que Nina descubra o segredo de seu algoz, e os dois estreitam-se num jogo calculista e mórbido para ver quem pode mais. Claro que o outrora poderoso Erskine não pensa em deixar barato, e planeja retomar a influência e seu emprego, perdidos na esteira de um episódio pueril com Tom, e é justamente Nina quem o vai ajudar, a contrapelo. Ele percebe o fascínio que a moça exerce sobre seu patrão, David Brooke, e a convence a seduzi-lo, prometendo elogios rasgados em suas glosas futuras. McKellen, Alfred Enoch e Gemma Arterton ocupam esse segmento de “O Crítico” de maneira não menos que brilhante, e ao trio junta-se Mark Strong, no balanço perfeito de virilidade e fraqueza. O caso extraconjugal do Visconde Brooke, um Cidadão Kane mais aristocrático e metódico, com Nina garante o retorno triunfante de Erskine às páginas do “Daily Chronicle”, mas implica na morte bárbara dos dois, em circunstâncias opostas, mas não de todo distintas.
De quando em quando, Tucker dosa a essência tenebrosa de seu filme, reforçada pela fotografia impecável de David Higgs, com soluções tão singelas quanto geniais, como nas vezes em que contrapõe a majestade de Erskine ao desprendimento de Annabel, a mãe de Nina, que atreve-se a pontuar com ele a respeito das diferenças entre o teatro elisabetano, feito basicamente de comédias, dramas históricos e peças com elementos de romance e aventura, e o jacobino, que o sucedeu, de textos mais violentos e cínicos, ou em que medida Christopher Marlowe (1564-1593) foi uma inspiração para Shakespeare. Quiçá a atriz mais versátil das artes dramáticas no país do Bardo, Lesley Manville garante umas risadas, mas também comove na iminência do desfecho, ao contar a Stephen Wyley, o verdadeiro amor de Nina vivido por Ben Barnes, sobre a morte dela. “O Crítico” é um filme cheio de maravilhosos excessos, que não tem a menor vontade de agradar a todo mundo — e por isso é tão bom. Esperei que Jimmy Erskine fosse se safar no final, isso não é o bastante para dizer que a história seja previsível, em absoluto. A despeito da coincidência de nossos ofícios, o velho é uma força da natureza.
★★★★★★★★★★